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Arrow: em defesa de Laurel Lance

Após quatro temporadas, Arrow tornou-se a prova de que nem só de tramas intricadas é feita a história do Arqueiro Verde. Entre problemas de roteiro, personagens que desapareceram de forma abrupta e plots inseridos sem razão, a série possui um problema mais grave, que surge com demasiada frequência: a péssima representação feminina.

Atenção: este texto contém spoilers!

Thea Queen (Willa Holland), Felicity Smoak (Emilly Bett Rickards), Sara (Caity Lotz) e Laurel Lance (Katie Cassidy), Lyla Michaels (Audrey Marie Anderson) e Nyssa Al Ghul (Katrina Law) são algumas das personagens apresentadas ao longo da série. Inseridas de maneiras e momentos diferentes, há pouco que, de fato, as aproximem: são mulheres com características e trajetórias muito distintas e cuja única similaridade parece residir no histórico comum como suporte para o desenvolvimento do protagonista, Oliver Queen (Stephen Amell).

Como outras produções baseadas em narrativas do universo dos super-heróis, Arrow segue um padrão em que força e inteligência são sinônimos de força física e vasto conhecimento tecnológico, particularmente em mulheres — e essas parecem características suficientes para construir uma personagem multifacetada (o que, claro, não são). A regra parece funcionar apenas para torná-las úteis dentro de um espectro específico, simplificando a experiência de ser uma mulher em um universo de heróis. Mesmo com um elenco composto majoritariamente por mulheres, a série falha ao reduzi-las a uma representação pouco inspirada, ignorando que, por trás das lutas e planos para acabar com o grande vilão da temporada, está um ser humano com nuances que deveriam ser exploradas de forma contínua e crescente, e não apenas quando convenientes ao desenvolvimento do protagonista.

laurel lance

Em seus quatro anos, Arrow utilizou inúmeras personagens femininas como ganchos, muitas das quais foram sacrificadas em prol de um suposto “bem maior” — daí a sequência assustadora de mulheres que perderam suas identidades, se tornaram empecilhos, vilãs vazias ou vítimas desnecessárias, que sumiram do mapa sem grandes explicações ou foram assassinadas de forma deliberadamente cruel. Como uma forma de recobrar os números de audiência alcançados pelas duas primeiras temporadas, os anos subsequentes trabalharam um modelo de mistério construído a partir da morte de um importante personagem, transferindo o peso do quem matou (whodunit) para quem foi a vítima.

É verdade que muitas dessas mortes não são definitivas; algumas personagens têm, de fato, a chance de voltar à vida. Mas, em grande parte, elas são responsáveis por transmitir a mensagem de que mulheres continuam a ser o sexo frágil, independente de treinamento ou da aquisição de habilidades. Mesmo o retorno, que ao herói soa glorioso, acaba não sendo positivo nesse cenário, servindo como artifício barato para satisfazer os anseios de um homem incapaz de lidar com a perda de pessoas próximas e as consequências de suas escolhas e erros. O fim não definitivo também abre mão da potencialidade da morte como algo absoluto, como uma ruptura narrativa e catalisadora de vivências complexas como a culpa e o luto. O sofrimento se torna gratuito e suas consequências, inexistentes.

Dentre todas as perdas contabilizadas até o momento, contudo, nenhuma parece ter sido tão dramática quanto a de Laurel Lance. Parte do elenco fixo desde a primeira temporada e uma personagem querida nos quadrinhos, Laurel começa como uma jovem advogada cuja vida começa a sair dos trilhos após a morte da irmã, Sara, e do seu então namorado, Oliver, que estavam juntos quando morreram em um acidente de barco. No período que se segue, Laurel precisa lidar não apenas com o luto, o alcoolismo do pai, a ausência da mãe e a carreira em ascensão, mas com o fato de que Sara e Oliver vinham mantendo um caso, do qual ela só vem a ter conhecimento por causa do acidente — gerando uma multiplicidade de sentimentos interessante de acompanhar. Pouco a pouco, é possível entender como Laurel foi capaz de superar os seus traumas, construindo para si um mundo não necessariamente livre de sofrimento, mas onde pudesse se sentir mais segura e valorizada. É dessa forma que, cinco anos mais tarde, Laurel se torna uma advogada respeitada, conquista autonomia tanto na vida pessoal quanto profissional e encontra equilíbrio na vida amorosa, em um relacionamento maduro e estável, muito diferente do anterior.

O retorno inesperado de Oliver para a ainda chamada Starling City traz à tona vários fantasmas e Laurel, compreensivelmente, se vê às voltas com o ex. Nesse momento, Arrow não trata seus conflitos de maneira leviana: embora seja evidente o sentimento que nutre por Oliver, ela não corre para seus braços no final, ignorando os erros que ele cometera em busca de um suposto final feliz. Por mais consciente dos seus sentimentos, Laurel não anula o seu sofrimento e deixa claro que não está disponível para suprir as necessidades afetivas de Oliver. Laurel é humana e por isso se deixa levar pela emoção, e é tão complicada e às vezes contraditória, mas sua postura permanece a mesma, demonstrando que essas são apenas algumas das muitas nuances que a delineiam.

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Que ela tenha sido mais do que um interesse amoroso ou uma donzela em perigo nem sempre foi visto como um aspecto positivo. Porque nunca foi uma mulher descomplicada e submissa, Laurel dificilmente teve seus problemas tratados com a mesma consideração dispensada a Oliver, cujas angústias sempre foram muito mais fáceis de compreender. Suas faltas sempre foram perdoadas; as dela, não — o que precisa ser observado ao considerar o dramático desfecho de “Eleven-Fifty-Nine”. A escolha sobre como conduzir sua trajetória sempre foi uma responsabilidade dos showrunners; ainda assim, de onde partem essas escolhas é um questionamento válido, e o impacto que o sacrifício de uma personagem autônoma, com ideias e vontades próprias exerce nesse contexto, também.

É verdade que Laurel havia sido levada a caminhos tortuosos muito antes e que eles nem sempre foram conflitos desacertados. A descoberta do alcoolismo, por exemplo, depois de anos lutando contra o vício do pai, poderia abrir espaço para um profundo desenvolvimento, mas o texto preguiçoso e mal-trabalhado não a permitiu chegar tão longe. Relegada ao segundo plano, sua ausência possibilitou a introdução de novas personagens, mas o que também poderia ser um avanço apenas serviu para privá-la de mais tempo de tela. Se, por um lado, havia Felicity sendo a personagem favorita do fandom, divertida e inteligente, Sara passou a ocupar um papel mais ativo na ação. À Laurel restou a trajetória solitária de uma alcoolista não tão bem delineada que vez ou outra tinha seu caminho atravessado por discursos daqueles que, tão falhos quanto ela, nunca lhe ofereceram qualquer suporte. Do pai que havia enfrentado o mesmo problema até a irmã e Oliver (que sempre se dizia muito apaixonado e arrependido, mas nunca foi capaz de olhar para além de si mesmo), ninguém estava realmente disposto a ajudá-la. Mais uma vez, Laurel encontra uma saída graças à ninguém além dela mesma, mas até sua trajetória em busca da reabilitação a fez uma personagem insuportável: a mulher traída, exaustivamente manipulada, que sofreu perdas terríveis e viu seu mundo virar de cabeça para baixo, tratada, de novo e de novo, como a única culpada pelos traumas que sofreu.

Em determinado momento, a terceira temporada promove um grande ponto de virada na trajetória de Laurel: depois de perder a irmã pela segunda vez, ela se vê impulsionada a seguir seu caminho como Canário Negro, manto outrora assumido por Sara. O que poderia ser uma jornada de independência e superação, no entanto, logo se transforma em uma trajetória controversa, que mais uma vez esbarra em um texto que se recusa a dispensar um desenvolvimento apropriado para a personagem. De certa forma, isso também se reflete na maneira como ela é tratada por outros personagens, que usam de condescendência disfarçada de preocupação para desmotivá-la a seguir um novo caminho. Ainda que não se deixe abater, provar sua capacidade jamais é suficiente para torná-la uma personagem verdadeiramente habilidosa e digna de confiança, sendo mais frequentemente tratada como alguém que precisa de cuidado, sempre sujeita a cometer erros básicos e tomar decisões precipitadas. Aos olhos da série, Laurel Lance nunca foi boa o suficiente e continuou a ser tratada como um empecilho — e como empecilho foi tratada até o fim.

É verdade que ela continuou a lutar, numa tentativa de se tornar a heroína que queria e precisava ser. Aos trancos e barrancos, Laurel conquistou novamente o seu espaço, garantindo para si a história que deveria contar desde o princípio e construindo uma realidade em que poderia ser a pessoa que salvaria o dia. A essa altura, ela não estava mais sozinha: finalmente, ela passa a ser parte integrante da equipe de Oliver e constrói amizades consistentes — dentre elas, aquela com Nyssa Al Ghul (Katrina Law), provavelmente a relação mais importante próximo ao seu desfecho. Seu arco, antes tão cheio de altos e baixos, parecia finalmente estar sendo construído com mais cuidado e carinho, e Laurel finalmente pôde encontrar uma chance de mostrar quem era de verdade.

Coincidentemente ou não, com as férias momentâneas de Oliver e Felicity ao final da terceira temporada, é Laurel quem assume as rédeas das questões inacabadas do Team Arrow e passa a desempenhar uma função cada vez mais importante dentro da equipe de vigilantes, que continua sob seu comando mesmo após o retorno dos dois personagens. Laurel se transforma em um ponto de equilíbrios entre os membros da equipe, tornando o diálogo e o entendimento possíveis quando as coisas ameaçam sair do controle. Sua trajetória parece desenvolver-se de maneira definitiva, indicando que seu futuro poderia ser melhor e mais produtivo — e então ela morreu.

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Existiam muitos personagens que poderiam ter deixado a série, personagens cujas mortes teriam o mesmo impacto e fariam maior sentido narrativo, além de movimentar a trama de maneira similar. Mas, de todas as possibilidades, a série preferiu assassinar justamente a mulher que acabara de recuperar o próprio espaço e independência.

A questão é ainda mais complicada quando consideramos que, enquanto Laurel recebeu um desfecho tão abrupto, o mesmo não acontece com outros personagens, ainda que em circunstâncias notoriamente mais críticas. O próprio Oliver é um exemplo disso: quando enfrenta Ra’s Al Ghul (Matthew Nable), Oliver é brutalmente ferido sendo, por fim, jogado de uma montanha com várias espadas enfiadas em seu corpo. Ainda assim, ele sobrevive, graças a um tipo milagroso de ervas com as quais é tratado em uma cabana no meio do nada. Ainda que a história seja inegavelmente sobre Oliver e que ele não vá morrer tão cedo (não enquanto a série continuar a ser renovada), não deixa de ser clara a existência de um duplo padrão.

É por isso que, embora a intenção dos produtores fosse chocar o público com a morte de um personagem recorrente e importante, e que esse artifício tenha sido anunciado desde o início da temporada, eles viram seu tiro sair pela culatra. Laurel Lance nem sempre foi uma personagem querida pelo público, mas, de maneira sofrível, ela conseguiu conquistar o seu espaço, e por isso tirá-la de cena, não só de uma forma tão abrupta, mas particularmente brutal, foi tão revoltante.

Ao dar seu arco por encerrado com uma morte tão vazia, Arrow prova que nunca soube o que fazer com suas personagens femininas quando deixam de estar à sombra do protagonista para seguirem suas vidas de forma independente. Mesmo em seu leito de morte, Laurel não teve a chance de ser a protagonista da própria narrativa — o que tornou uma despedida já tão dramática em um episódio bastante amargo. Suas palavras não doem porque uma vez Laurel Lance e Oliver Queen formaram um bonito casal ou porque ela estava deixando o caminho livre para que ele pudesse viver um amor pleno com Felicity ou, ainda, porque ela tinha sido apenas um capítulo na história de dele, enquanto ele seria toda a sua história de muitas maneiras. Suas palavras doem porque elas encerram quaisquer chances que ela poderia ter de um recomeço. Mais do que um dos muitos interesses amorosos de Oliver, Laurel Lance foi uma super-heroína, uma mulher inteligente, resiliente e determinada, que cometia erros, mas que também era capaz de acertar e salvar o dia. Ela era uma mulher repleta de sentimentos, que sentia raiva, mas que podia ser incrivelmente generosa, e que sempre teve um enorme senso de justiça; uma mulher completa, sacrificada justamente por sê-lo. Como muitas mulheres na ficção, ela merecia muito mais do que recebeu, e é uma pena que nós jamais tenhamos a chance de vê-la crescer à altura do próprio potencial.

6 comentários

  1. É por isso que, com exceção da Batwoman e do Aquaman dos Novos 52, eu larguei de mão os projetos da DC em qualquer mídia. Eles ainda precisam aprender muito sobre diversidade, igualdade e o que difere o bem do mal.

  2. Sempre fiquei muito empolgado quando disseram que teria uma série sobre o arqueiro verde, justamente por causa do casal Oliver and Dinah.
    Sempre achei ele muito divertido e ela além de ser um balanço para ele, sempre foi muito independente, forte e nunca precisou dele pra nada, tanto que ela fez e faz parte das aves de rapina maravilhosamente. (quem não conhece, precisa procurar, sério).
    E quando vi a adaptação que fizeram dela pra série fiquei triste no início pois ela era o oposto do lado dela nos quadrinhos. Mas perdoei os criadores da série quando assumi que se tratava de uma série de origens, e que um dia ela viraria a incrível e poderosa Canário negro que tanto amamos.
    E como você disse, mataram ela DO NADA e completamente sem justificativa senão causar surpresa nos fãs.
    realmente ainda estou procurando motivos para voltar a assistir a próxima temporada, pois sem Canário a série não faz sentido para mim.

  3. Texto muito incrível, parabéns mesmo. Eu costumo dizer que Arrow não mereceu a Canário Negro, tanto pela maneira “insignificante” que tratou a evolução da personagem como a morte sem fundamento dela. O universo DC ainda tem muito o que aprender sobre igualdade de gênero e girlpower em geral, mais ainda da bons passos como por exemplo a história da Sara que teve muitas idas e vindas e hoje eu considero o melhor arco feminino das séries 🙂

  4. Belíssimo texto, a laurel merecia muito mais na série. parei de ver quando a mataram, para mim perdeu totalmente o sentido.

  5. “Se por um lado tínhamos Felicity (Emily Bett Rickards) sendo a personagem favorita do fandom”
    Quando vocês escrevem os textos vocês levam em consideração os fãs americanos ou brasileiros? Porque por aqui no Brasil a maioria preferia a Laurel do que a Felicity

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