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Está na hora de perdoarmos Ellis Grey por ser humana

É notório o quão importante é Ellis Grey (Kate Burton) como elemento da história em Grey’s Anatomy. Ele parece carregar sobre os ombros a responsabilidade sobre tudo o que a filha, Meredith (Ellen Pompeo), é e não é. Se Meredith é uma médica excepcional com talento natural, é porque herdou as habilidades da mãe; se Meredith tem algumas dificuldades em lidar com sentimentos, é porque a mãe era uma pessoa fria. Apesar de toda a relevância da personagem como uma presença que paira sobre as treze temporadas da série, não temos contato com a Ellis Grey pessoa em mais do que um punhado de cenas.

Atenção: esse texto pode conter spoilers de todas as treze temporadas!

No começo da série, já encontramos Ellis nos estágios avançados do Mal de Alzheimer, sem muito contato com a realidade e mergulhada em memórias. Apesar de esse ser o momento em que temos contato com as primeiras informações sobre a vida pessoal dessa mulher tão reconhecida em sua vida profissional, esse é só um conhecimento básico para que sua influência na trama da série como um todo possa ser reconhecida. Pouco tempo depois, a personagem morre, e todo o contato que temos com ela a partir de então são relatos, menções e flashbacks.

Apesar de aparecer em vários flashbacks curtos ao longo da maioria das temporadas, existem dois episódios específicos em que temos um contato real com a personalidade de Ellis Grey e que nos permite chegar um pouco mais perto de compreender quem ela realmente era: “The Time Warp” (episódio 15 da sexta temporada) e “If/Then” (episódio 13 da oitava temporada).

Em “The Time Warp” somos levados no tempo de volta até a época em que Ellis Grey (Sarah Paulson) e Richard Webber (interpretado em sua versão jovem por J. August Richards) eram residentes no Seattle Grace Hospital. Os dois se unem em sua exclusão: uma mulher e um homem negro, ambos pertencentes a grupos sociais que não eram aceitos como iguais pelos colegas e chefes, todos homens brancos. Enquanto Richard era eternamente reduzido à cor da sua pele, Ellis era menosprezada e apelidada de “enfermeira”, porque uma mulher não poderia realmente aspirar à condição de médica sem virar piada. Foi nesse momento que os dois se envolveram em um relacionamento romântico-sexual.

Ellis Grey jovem

O que é relevante é que na época retratada, Ellis já era mãe. Ela não apenas precisava dar conta da tarefa pesada que é a residência médica por si só, como também precisava superar todos os outros residentes apenas para provar que merecia estar ali, ocupando aquele lugar, e ainda por cima exercer as funções e responsabilidades que a maternidade coloca sempre sobre a figura da mãe.

Ainda que Thatcher (John Ainsworth) teoricamente exercesse o papel de cuidador da filha enquanto a mulher trabalhava, o que fica evidente — e ainda assim passa em grande parte despercebido — nesse episódio é que, mesmo assim, ele não tira o peso dos ombros da mãe. Apesar de a princípio ele estar cuidando de Meredith, ele acha que é apropriado levar a menina até o local de trabalho da mulher porque a menina pede, o que nunca aconteceria se a situação fosse inversa.

Da mesma forma, Ellis ocupa o papel de “destruidora de lar” ao se divorciar do marido após se apaixonar pelo colega de trabalho, e de quebra leva ainda a responsabilidade pelo ex-marido ter abandonado a filha. O que poucos enxergam é que ela nunca abandonou ninguém. Ela se divorciou, coisa que hoje em dia é consideravelmente mais fácil de se compreender do que na época em que os fatos se passaram. Mas ela não vai embora e deixa tudo para trás como a imagem que pintaram dela levaria a crer — ao contrário, mesmo que ela encontre sua realização e seja apaixonada pelo que faz, e ainda que fosse muito mais fácil simplesmente ir embora e deixar Meredith com o pai, ela leva a filha junto consigo.

É interessante ressaltar que os acontecimentos narrados nesse flashback se passam no final da década de 60. A época retratada foi o auge da “mística feminina” nos Estados Unidos. Como Betty Friedan ressaltou no livro A Mística Feminina, de 1962, a mística consiste em toda uma construção social massivamente difundida entre os indivíduos e pregada direta e indiretamente pelos meios de mídia existentes na época que exaltavam a figura da “nova mulher”, a rainha do lar, que encontrava sua realização no papel de esposa-mãe-dona-de-casa. Nessa época, mulheres como Ellis Grey, que não apenas tinham uma profissão, como tinham uma carreira, eram extremamente mal vistas. E parte dos preconceitos permanecem até hoje.

Ainda que atualmente a imagem da mulher profissional bem-sucedida por si só não escandalize, ainda existem muitos estereótipos e preconceitos em relação a essas mulheres. Em especial, uma imagem que continua a ser muito difundida na cultura pop até os dias de hoje é o da profissional frustrada, que tem sucesso na carreira, mas é infeliz na vida pessoal. Ainda que existam questionamentos válidos a serem levantados quanto à “dedicação” excessiva à vida profissional em detrimento da vida pessoal, é importante levar em consideração o quanto essa questão convenientemente só é lembrada quando o profissional em questão é mulher.

O outro episódio que é especialmente importante para entender a personalidade de Ellis Grey, “If/Then”, é centrado em uma realidade alternativa: o que teria acontecido se Ellis e Richard tivessem ficado juntos e ela não tivesse desenvolvido Alzheimer. É a única forma de termos contato com o que a Ellis seria nos dias de hoje se não tivesse levado as duas grandes pancadas da vida – a doença e o abandono de Richard. Apesar de ela não ter tanto tempo de tela diretamente, todos os acontecimentos do episódio partem de uma premissa não mencionada: qual seria o efeito de Ellis Grey sobre a história de Grey’s Anatomy se ela ainda estivesse viva.

Ellis Grey e Richard Webber

É impressionante como, quando paramos para pensar mais a fundo, até os pequenos detalhes desse episódio giram em torno dela — por exemplo, a presença do personagem Charles Percy (Robert Baker), que morreu em um tiroteio no hospital na sexta temporada, o que leva a crer que o tiroteio poderia nem ter acontecido. Mas a diferença mais marcante é na personalidade da Meredith (Ellen Pompeo) — e isso tem relação apenas indireta com a mudança de rumo da Ellis: o que realmente mudou completamente a vida da personagem foi a inserção de uma figura paterna presente na sua criação.

Uma coisa muito marcante sobre a figura de Ellis Grey, não só nos dois episódios apontados, mas na série como um todo, é como ela é mal compreendida. Ainda que tenha seus traços sádicos, confio em Shonda Rhimes (criadora e produtora da série) o suficiente para acreditar que isso não é nada acidental. Apesar de Ellis Grey ser uma das fundações de Grey’s Anatomy, o que vemos na maior parte do tempo é como os outros a enxergam, mas nas poucas vezes em que temos contato direto com ela, a série sempre dá um jeito de colocar alguma indicação nada sutil do quanto ela se importa com a filha, do seu próprio jeito.

Essa é uma observação interessante de se fazer a longo prazo, e que fica de certa forma escondida: vemos as coisas pela perspectiva de Meredith. Quando a série começa, Meredith é pouco mais do que uma pós-adolescente que rejeita a pressão de uma mãe rígida e muito exigente, e é obrigada pela doença dessa mãe a assumir responsabilidades de um adulto e começar a crescer. Nos treze anos que se seguiram, ela amadurece muito, e com isso a sua visão de mundo também amadurece. Ela, em certa medida, fica cada vez mais parecida com a mãe, tem filhos, descobre alguns fatos novos sobre a vida de Ellis e, com tudo isso, os sentimentos dela com a relação à mãe mudam completamente.

É assim que nos deparamos com a Meredith na décima segunda temporada em uma situação simétrica à que Ellis esteve quando se viu grávida, com uma filha pequena e sozinha. As duas podem ter chegado ali por caminhos diferentes e escolhido rumos opostos a partir de uma mesma situação, mas foi um momento marcante em que ela finalmente entendeu em alguma medida o que era ser Ellis Grey. É por isso que a criança se chama Ellis, mesmo que muita gente não tenha entendido a dimensão desse arco na história como uma reconciliação entre mãe e filha.

Ao fim e ao cabo, a chave para compreender Ellis Grey de uma forma mais justa está em uma frase que a própria personagem diz para a filha: “Eu te criei para ser extraordinária.” Mas a ênfase não está em extraordinária, como se costuma acreditar, e sim em criei. Ela não foi a “mãe perfeita” porque não existe uma mãe perfeita. Mães são nada mais do que mulheres, pessoas — e pessoas não são perfeitas. Mas precisamos em algum momento reconhecer que Ellis Grey não é uma lenda, e não é um monstro — é um ser humano. Um ser humano que, cumprindo a função de mãe, abriu mão de muita coisa para criar sozinha a filha enquanto seguia seu sonho, e fez tudo o que fez acreditando que estava fazendo o melhor pela filha.

3 comentários

  1. Perfeito.
    Eu sou mãe e busco a excelência no trabalho. E me vejo muito na Ellis.
    Tenho atitudes duras com minha filha porque estou criando-a pra ser excepcional. Não deleguei nada, o melhor deleguei o mínimo, eu a crio de verdade. E isso é duro!
    Optei por não abdicar da vida profissional “dos meus sonhos”, carreira acadêmica e tal. E é uma pancada.
    Não sei se estou fazendo as coisas do jeito errado. Mas estou fazendo o que posso, o melhor que posso.

  2. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼 Vim parar aqui por acaso, e amei 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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