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Elena e Clara: duas mulheres

Aquarius estreou nos cinemas brasileiros em setembro de 2016, mas já causava o maior frisson desde o Festival de Cannes que aconteceu mais cedo no mesmo ano. O lançamento foi seguido de polêmicas: relações com a política brasileira, com Michel Temer, o golpe, o Oscar, etc. Foi tamanha a repercussão que não consigo formular qualquer desculpa válida para só ter assistido ao filme agora, em pleno janeiro de 2017.

Por essas e outras que fui fazer Letras e não Jornalismo; o meu timing nunca foi muito bom. Sempre vejo as séries atrasada, quando não desisto de acompanhar e fico apenas revendo meus programas favoritos. Com literatura é a mesma coisa; de contemporânea sei quase nada, mas li vários escritores importantes dos séculos passados. De maneira comicamente irônica, no final do ano passado me vi contagiada pela #FerranteFever que se espalhou mundo afora, inclusive no Brasil, quando começaram a ser traduzidos os romances da tetralogia, cujo o último volume ainda é inédito aqui (com lançamento previsto para este ano).

“Mas o que diabos tem a ver a Elena Ferrante com Aquarius?” “E porque você está falando disso agora?” “Quem se importa que você assistiu ao filme só agora, mas está acompanhando os livros que são mais-ou-menos recentes?”, você aí pode estar se perguntando, e eu lhe respondo: Aquarius e Elena Ferrante têm tudo a ver. E é importante que eu só tenha assistido ao filme agora, mas tenho acompanhado os livros porque só assim pude fazer a relação que será aqui estabelecida.

clara

Sei que falei Aquarius aí em cima, mas não quero falar sobre o filme. Quer dizer, claro que quero, mas não no filme como forma em si; discutir a câmera, as cenas, a linguagem cinematográfica. Eu quero mesmo é falar de Clara (Sônia Braga).

Clara é uma mulher. Vemos no prólogo do filme que Clara é uma mulher que teve câncer. Câncer de mama, uma doença comumente relacionada às mulheres, pois na maioria dos casos a mulher com esse tipo câncer precisa retirar a mama, mutilar o corpo e, assim, romper com o padrão social de feminilidade. Clara passou pela mastectomia, a cirurgia que retira a mama com o câncer. Clara é uma mulher que, por um período de sua vida, perdeu o controle sobre seu corpo e de sua história.

Na Tetralogia Napolitana (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Vai e de Quem Fica e História da Menina Perdida), quem narra a história é Elena, ou Lenu para seus amigos e familiares. Lenu, já uma senhora de idade, resolve sentar e escrever a história de sua vida e a de sua amiga Lila, apelido de Rafaella. Lenu se torna mais do que uma metáfora de empoderamento, pois ela, como escritora, tem o poder da palavra, o poder da construção de narrativas e das inúmeras possibilidades de criação literária. Depois de um telefonema do filho de Lila dizendo que sua mãe sumiu, Lenu sente a necessidade de registrar os anos que cresceu junto e separada da amiga; sente a necessidade de lembrar de sua vida e de controlar a própria narrativa.

Ao longo do filme, vemos que Clara também é irmã, mãe, tia, viúva, avó, mas nenhum desses rótulos a define completamente. Clara é uma mulher que sempre está em busca de ser. Seja sendo mãe, neta, tia, e por aí vai; Clara não se limita aos valores sociais de “ser mulher” para ser Clara. Ela busca o controle sobre a sua existência; seja no cultivo de seu longo cabelo — que antes perdeu por causa da doença —, seja em seu apartamento — que será o mote central do filme —, seja nas relíquias de seu passado; álbuns, fotos, músicas, que contam a sua história. Clara é dona de tudo isso e não deixará que ninguém tome controle sobre o que é seu.

E Clara controla a sua vida. Ela prende e solta seu cabelo — gestos que são uma metáfora do poder que ela busca sobre si mesma, sobre sua história, sobre suas escolhas, sobre sua vida, sobre o seu corpo, o seu apartamento. Os cabelos já lhe foram tirados uma vez, junto de um seio por causa do câncer. Clara não permite que isso aconteça de novo. Quando ela diz, no final do filme: “Eu sobrevivi um câncer, tem mais de trinta anos, sabe? E hoje em dia eu resolvi uma coisa: eu prefiro dar um câncer em vez de ter um”, ela agarra com as mãos e toma para si o direito de controlar os acontecimentos de sua vida. Nada e nem ninguém de fora irá ditar o que Clara irá fazer, ela não vai mais reagir às coisas. É ela quem irá narrar a sua história.

clara

Fazendo Letras, uma das primeiras coisas que aprendi foi a importância do narrador nas obras literárias. É claro que já havia me deparado com narradores dos mais diversos tipos em minhas leituras antes disso, mas nunca havia realmente percebido que a história só é aquela história porque há um narrador contando. Todo mundo que leu Dom Casmurro, por exemplo, já parou para pensar que o livro seria outro se não fosse narrado por Bentinho, pois é ele quem conta a sua própria história? O ato de contar também é um ato de controlar, de poder, de omitir ou de mudar os fatos. Só temos acesso à história contada; nós não estávamos na casa no Engenho Novo quando Bentinho viu a semelhança de seu filho com seu amigo Escobar para saber se o menino era mesmo parecido com o outro homem. É claro que podemos supor e especular que Capitu não traiu Bentinho e que ele estava paranoico, mas nada disso é fato, pois os fatos que temos são os fatos que Bentinho nos apresenta.

Tudo isso para explicar que o ato de tomar a própria história pelas mãos e poder contá-la não é tão simples e banal quanto parece. Ainda mais para mulheres. Lenu viveu em outra época; filha do pós-guerra italiano, nasceu em Nápoles cercada por uma sociedade machista e conservadora. Talvez a sua maior conquista tenha sido conseguir continuar na escola; algo que para nós é obrigatório, para Lenu foi uma luta, pois contra todas as expectativas da sua comunidade, Lenu não buscou o sucesso pelo casamento, mas pelos frutos de seus esforços no estudo. Lenu não lutou contra o câncer, nem defendeu sua casa contra a especulação imobiliária, mas suas batalhas também foram pelo direito de ser. Clara carrega consigo seu cabelo, seu apartamento, suas memórias e Lenu têm seus êxitos acadêmicos, o livro que escreve e publica logo ao sair da faculdade. De uma maneira bem diferente, as duas buscam a mesma coisa: serem narradoras de suas histórias.

É claro que é sempre preciso lembrar que tanto Clara quanto Lenu são mulheres privilegiadas e que tiveram oportunidades que muitas outras mulheres não podem ter. Clara é filha da classe média branca intelectualizada de esquerda que vemos muitas vezes retratada no cinema brasileiro. O seu apartamento que tanto luta para permanecer seu, fica num prédio de frente para a praia em um bairro nobre de Recife. Clara cresceu com empregadas, muitas vezes mulheres negras que não compartilham do mesmo mundo que seus empregadores, relação que é exposta na fala: “É inevitável, a gente explora elas e elas roubam a gente de vez em quando. É inevitável”. É mais inevitável não lembrar que a empregada “quase da família” é resquício de um passado escravocrata que nos recusamos tanto de lembrar, mas não estamos dispostas ainda a superar. Clara pôde estudar, viajar para fora do Brasil, educar seus filhos de acordo com os ideais em que acreditava, consegue manter seu estilo de vida sem aparentes problemas financeiros. Lenu, por outro lado, possui outros privilégios. Ao contrário dos pais de sua amiga Lila, os pais de Lenu a deixam continuar seus estudos, o que será determinante para as amigas seguirem caminhos opostos; Lenu vai para a universidade e Lila se casa ainda adolescente com um rapaz rico de seu bairro.

Pensando em mais semelhanças entre a série de livros e o filme, percebi que os dois são separados em partes. O filme possui um prólogo seguido de três partes: “O cabelo de Clara”, “O amor de Clara” e “O câncer de Clara”, que podem ou não estar em ordem cronológica. A história de Lenu também é dividida; além da divisão maior entre cada livro, há as partes: “Infância – História de Dom Achille”, “Adolescência: História dos Sapatos”, “Juventude” e “Tempo Intermédio”. As histórias vão sendo contadas aos poucos, pois é também aos poucos que as personagens se constroem. Assim como na vida, cada dia conta, e cada momento pode ser importante para a história final — se é que existe uma história final. Acredito que personagens nunca estão completamente prontas, pois elas dependem de quem as lê ou assiste para existirem; e sempre vemos e lemos coisas de maneiras diferentes, ou revemos e relemos em diferentes momentos, o que nos faz entender a obra de outra forma.

A minha Clara e a minha Lenu se parecem. Mesmo que o tempo, o espaço e as formas artísticas as separem; uma é personagem de filme e a outra é de livro, uma está no Brasil e a outra na Itália, mas as duas são mulheres que lutaram para serem donas de si próprias, que lutaram para terem o direito de contarem a própria história e, apesar de todos os sofrimentos no meio do caminho, as duas têm sucesso.

É bem revigorante em um espaço pequeno de tempo ter acesso à duas histórias tão importantes sobre mulheres. E que não são super-heroínas, ou de realidades distantes e fantásticas, mas mulheres que lidam com os mesmos problemas que mulheres lidam todos os dias — não que super-heroínas ou mulheres que vivem em outras realidades não tenham problemas e não precisem lidar com preconceitos, machismo e racismo. Mas, às vezes, não é preciso ir muito longe para contar boas histórias e criar boas personagens, pois na maioria das vezes, elas estão logo ali, do nosso lado.