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Edith Crawley e a jornada do amor próprio em Downton Abbey

Um dos maiores sucessos recentes da televisão britânica, Downton Abbey é um drama de época que acompanhou por uma década a família e os empregados que viviam na fictícia casa de mesmo nome. É difícil definir um protagonista para a série, já que seu elenco é muito grande e os roteiristas deram, e desenvolveram, tramas para todos. Assim, talvez seja mais fácil afirmar que ela foi protagonizada por personagens diferentes em momentos diferentes. Edith Crawley (Laura Carmichael), filha do meio da aristocrática família de Downton, demorou para ganhar seu momento — mas ele veio e, quando veio, foi uma das jornadas mais bonitas de acompanhar.

Downton Abbey foi uma série repleta de personagens femininas, em muito por simples necessidade. Além das empregadas da casa, que não poderiam não ter sido mulheres, devido à divisão bem clara de tarefas, há as filhas da família Crawley. A trama de fundo da série, que envolveu todos os personagens, foi sempre a não permanência da vida como conheciam que parecia prestes a desmoronar a todo momento. Filhas mulheres, em muitas ocasiões, não podiam herdar a propriedade de suas famílias se os homens assim determinassem e fizessem dessa determinação algo oficial. A intenção não era destituir as mulheres de posses, mas assegurar que a propriedade permanecesse sempre dentro daquela família. Quando a mulher se casava, era considerada parte da família do marido (não era por acaso que elas mudavam sempre de sobrenome), de modo que a propriedade de seu pai deveria ser passada para o homem mais próximo — um irmão, um primo, um primo que ninguém nunca viu… e assim por diante. É o caso dos Crawley. Em 1912, quando a série tem início, eles tinham três filhas crescidas: Mary (Michelle Dockery), Edith e Sybil (Jessica Brown Findlay). Mary casaria com o herdeiro, mas ele morre no naufrágio do Titanic. Com a chegada do novo herdeiro, o mundo dos Crawley está, pela primeira vez, vivendo um momento em que a mudança é iminente.

Edith Crawley

Atenção: este texto contém spoilers!

Nos anos iniciais, Mary, a primogênita, é o centro de tudo — afinal, é ela que deverá ou não se casar com Matthew (Dan Stevens), o herdeiro, e toda a família está muito atenta a isso. Mas a história de Mary e Matthew vai muito além do simples interesse econômico, se transformando numa bela e dramática (às vezes até demais) história de amor. Enquanto isso, Sybil, a caçula, é a filha que confronta as normas sociais — seja vestindo calças (imaginem só!), seja frequentando os protestos das sufragistas, seja se envolvendo com o motorista. Mary e Sybil têm personalidades muito fortes — embora completamente opostas — e têm a atenção constante dos pais.

Já Edith fica naquele famoso limbo de filha do meio e é completamente apagada. Ela não é considerada bonita como as irmãs e não tem características e crenças particularmente marcantes como elas, o que a torna menos interessante. Mas o problema com a personagem vai mais fundo: ela se ressente do que não tem e vive em conflito constante com a irmã mais velha. Nos primeiros anos, quando Edith protagoniza alguma coisa, geralmente é uma picuinha com Mary. Edith não é gostável. Ainda que Mary consiga ser bastante egoísta e profundamente mesquinha, ela vive questões muito humanas de dúvida e quebra e dor e anseios e medos, por isso torcer por ela é muito mais fácil e natural do que torcer por sua irmã.

Desesperada para ter o que as irmãs têm, preocupada em não ficar sozinha (o verdadeiro horror, especialmente na década de 1910), Edith chega até a ganhar uma festa de casamento com um senhor já idoso que é bem intencionado, mas que ela claramente não ama. Ele abandona Edith no altar porque não quer que ela, que é tão jovem, desperdice sua vida com ele. Isso afeta Edith mais porque ela queria estar casada do que por ela querer estar casada com Sir Anthony (Robert Guy Bathurst), o que a faz passar por alguns momentos de amargor quanto a ser solteira para sempre.

A quarta temporada representa um grande ponto de virada para Edith. Ao conhecer Michael Gregson (Charles Edwards), ela mesma começa a quebrar algumas convenções sociais sem sentido. Como a sofredora oficial da série, no entanto (só perdendo para o casal Bates), é claro que a personagem não ganha um descanso — Gregson, de quem ela sempre pareceu genuinamente gostar muito, desaparece, deixando-a grávida e solteira na década de 1920. É um escândalo prestes a acontecer, do qual ela toma conta com a ajuda de sua tia moderna. Mais tarde, quando se descobre que Gregson não sumiu, mas está de fato morto, Edith herda a revista dele, que é publicada em Londres para o público feminino. Esse talvez seja o momento mais importante para a personagem.

Com seus afazeres e ocupações como nova editora da revista, ela passa cada vez mais tempo em Londres e longe dos dramas provincianos do interior. Se antes suas ocupações eram principalmente participar de jantares e entreter convidados — o que é ainda mais desestimulante para todas as mulheres de Downton depois da guerra, quando todas elas se sentiram úteis pela primeira vez já que se tornaram mão de obra necessária —, agora ela tem funcionários para gerenciar, um negócio que depende dela e que demanda todos os seus esforços.

E tem a filha. Edith deu à luz uma menininha com a qual obviamente não poderia ficar, sendo uma mulher solteira, e ela é dada para um casal de trabalhadores locais criarem. Mas a menina, além de ser sua filha, também é um elo com Gregson, e Edith não consegue cortar os laços. Ela segue visitando a garotinha até chegar ao ponto de decidir trazê-la para viver em Downton como sua “protegida”. Aos poucos, a história vai sendo desmascarada — e aceita — por diversos membros da família. Nesse meio tempo, Edith parece cada vez mais leve. O casamento já não figura como sua aspiração principal e os atritos com Mary não são seu principal motivo de destaque.

Com a chegada da última temporada da série, surge também um novo romance para Edith. Mas acompanhar essa trama, embora tenha sido envolvente, não foi mais interessante do que acompanhar o crescimento pessoal e profissional dela. Especialmente o crescimento pessoal. De uma garota insegura e apagada, ressentida pelo que não era, ela cresceu para se tornar uma mulher muito mais certa do próprio valor. O grande conflito de Edith tem a ver não com casar ou não com Bertie Pelham (Harry Hadden-Paton), mas com casar escondendo uma mentira — o fato da pequena Marigold ser sua filha. Primeiro do próprio Bertie, trama que recebe mais um daqueles momentos de Mary sendo desnecessariamente horrível. Depois, da mãe dele. E Edith decide que, sem honestidade e verdade, não queria casamento algum. Ela quer ser aceita exatamente por quem é, e o fato de ser uma mãe solteira é tão parte de quem ela é quanto o fato de ser uma Crawley ou uma editora de revista.

Ao fim de Downton Abbey, Edith Crawley sem dúvida representou uma das personagens de maior crescimento pessoal em toda a série. Seu ressentimento desaparece conforme ela consegue perceber em si mesma (e provar para aqueles em seu redor) o próprio valor e talentos, capacidades e independência crescentes. A jornada de Edith ao longo de uma década é também a jornada até o amor próprio e ela passa de uma personagem secundária na história de outras pessoas para a protagonista na própria história. É verdade que Edith conquista o amor, respeito e admiração de um homem — que dá inúmeras provas de que será um grande parceiro de vida dali por diante —, e que também ganha tudo isso da família, especialmente a parte da admiração. Mas a parte mais importante, que aconteceu lentamente ao longo de uma década, foi Edith Crawley conquistar a si mesma.

11 comentários

  1. Fiquei tão feliz com esse texto! Excelente (e linda) análise. Edith realmente não era uma personagem “gostável” no começo e é incrível ver como no fim acabamos nos apaixonando por ela. Vou sempre lembrar dela como uma personagem muito bem construída, uma personagem com uma jornada impressionante. Enfim, Edith é inesquecível.
    (Sdds Downton Abbey)

    1. Que bom que você gostou, Vanessa – muito obrigada! Também acho incrível o quanto fica fácil se apegar à Edith no fim da série, a história dela foi muito bem escrita e bem desenvolvida. Morro de saudades de Downton também.

  2. Gente, o tempo inteiro, desde o primeiro episódio gostei dela… Muito mais que da Mary. Sybil e Edith, sem dúvidas! Morria de dó de como a Mary sempre conseguia tudo e pisava na irmã, como se fosse superior e melhor que ela. Amei o texto, uma ótima análise. Também amei o crescimento pessoal da Edith e fiquei feliz dela ter uma filha do homem que a amou.

  3. Amo achar textos que eu mesma gostaria de ter escrito. A personagem Edith sempre me incomodou: À sombra das irmãs, à sombra das mudanças do novo século, sempre à sombra. Mas eis que ela finalmente surge para brilhar. E nossa, como brilhou!!! Acho até que voltarei a assistir DA!

  4. Nossa que texto maravilhoso! Adorei Dowton Abbey, sem dúvida uma das minhas série favoritas e atribuo como um dos pontos altos as histórias das personagens femininas. Mary ( insuportável), Sybil ( a feminista que estava caminhando com as mudanças do tempo) Lady Grantham (inquebrável ) , Edith ( ” não gostável”), isso sem mencionar as empregadas e outras mulheres maravilhosas ( e algumas nem tanto) que passaram por Dowton Abbey. O crescimento da personagem da Edith é muito legal de acompanhar e nos prova que é possível e necessário a construção de personagens femininas de forma consistente e que não caiam saídas fáceis e vazias.

  5. Lindo texto. A Edith sempre foi aquela coitadinha, tentando se encaixar em padroes que nao eram os dela. Ficou comprovado o quanto ela era competente e tinha sim, personalidade forte como as irmãs. Ela realmente desabrochou e virou a ser uma mulher muito mais interessante de seu tempo que a Mary.

  6. No início do seriado cheguei a não gostar de Edith, porém sua jornada foi mostrando que ela era mais que a irmã recalcada e fui percebendo que na verdade era Mary que precisava da fragilidade de Edith para se sentir segura. Notei que as implicâncias iam crescendo conforme Edith demonstrava que dava menos importância. Percebi que na verdade era Mary que se sentia frágil e menor e usava aquela máscara terrível para esconder e morria de medo da irmã descobrir o próprio valor e chegar a superá-la, o que de fato acabou acontecendo. E a jorada delas foi muito envolvente porque mostrou para Mary no final que ela não precisava tomar todas as atenções para ser vista e para Edith que ela perdeu tempo acreditando nas mentiras de uma pessoa que no fundo sentia inveja dela por ela ser tão maravilhosa. A personagem Edith trouxe para mim muitas lições, mostrou como é possível crescer e se superar em meio às dificuldades e que precisamos sim acreditar em nós mesmos. Sempre. Saudades de Downton Abbey.

  7. O que mais me incomodava era que a família foi até negligente com Edith…por ela ser a personagem “certinha’ sempre fazendo tudo para agradar aos pais, ela recebia pouca atenção… pois a vida é assim…se vc não bater o pé e dizer o que quer acaba sendo deixada de lado… Edith me parecia carente, num limbo realmente… infelizmente as convenções da época impediram o seu casamento… Nem os lamentos em sua tristeza eram maiores em relação a ela do que com as irmãs… mas ela que precisava crescer, independente de todo o resto da atenção de sua família. E conseguiu!

  8. Gostei do texto só não concordo com uma coisa: achei super injusto Mary desfazer o casamento dela por inveja e depois se casar e viver um grande amor. Ser feminista e independente não descarta o valor de ter uma pessoa amada ao seu lado. Compartilhar a vida com que ama, não diminuí ou nega lutas como independência feminina e individualidade. Acho que a série poderia mostrar o poder da personagem de Edith e mesmo assim, deixá-la ser feliz ao lado de uma pessoa que ela amava. Se quisessem mostrar que não precisa de alguém para ser feliz, que não colocassem histórias de amor em sua vida para depois tirar, ou então, que não tivesse lhe dado uma filha. Afinal, a filha caracteriza uma relação de amor, então tbm quebra a ideia de que temos que ser felizes sozinhos.

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