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Ecos: conectados pela música

Muito se diz sobre como a música conecta as pessoas, e Ecos, livro da escritora norte-americana Pam Muñoz Ryan, parte dessa premissa para elaborar o enredo de seu premiado livro. Evocando as principais características das fábulas dos Irmãos Grimm, a autora consegue costurar os destinos de cada uma dos seus personagens de uma maneira delicada e sensível. Se em um primeiro momento as histórias contadas por Pam parecem ter um final agridoce e serem desconectadas umas das outras — com exceção de um certo elemento mágico presente em todas as narrativas —, é só para sermos surpreendidos por um desfecho emocionante ao virar a última página da bela edição brasileira elaborada pela DarkSide Books.

Toda a trama se desenrola a partir do encontro do pequeno Otto, perdido na Floresta Negra, com três irmãs encantadas. Cinquenta anos antes de estourar a Primeira Guerra Mundial, Otto está brincando de esconde-esconde com seus amigos e decide que, para ganhar o jogo, precisa encontrar o melhor esconderijo possível. É Mathilde quem está contando e Otto quer impressioná-la, por isso decide se embrenhar na Floresta Negra e entrar no espaço proibido para as crianças. “De tempos em tempos, ele olhava para trás, certificando-se de que ainda podia ver as pereiras lá atrás”. Sabendo que demoraria até que todos os seus amigos fossem encontrados e ele pudesse se revelar como grande vencedor, o menino abre o livro A Décima Terceira Gaita de Otto Mensageiro e começa a leitura para passar o tempo.

Absorto na história que está lendo, Otto perde a noção do tempo e se assusta quando percebe que o clima mudou, com ventos sombrios, e que ele está mais fundo na floresta do que pensou a princípio. O menino tenta encontrar o caminho de volta apenas para se ver ainda mais perdido dentro da Floresta Negra — ele tenta gritar e chamar por ajuda, mas a forte ventania leva o som de sua voz para longe. Desorientado, Otto se depara com três moças usando vestidos esfarrapados e encantadas por, finalmente, receberem uma visita. Eins, Zwei e Drei, enfeitiçadas por uma bruxa a sempre permanecerem na floresta, fazem um trato com Otto: as três o ajudarão a retornar para casa se o menino as levar junto com ele, dentro da gaita que ele tem no bolso. Otto hesita por um pequeno momento, julgando o instrumento como uma “simples gaita”, mas as irmãs o fazem entender que ela é muito mais do que isso.

“Quando a toca, você inspira e expira, assim como faz para manter o corpo vivo. Você já parou para pensar que uma pessoa pode tocar a gaita e passar adiante sua força, sua visão e seu conhecimento?”

O prólogo de Otto e as três irmãs encantadas é o ponto de partida das três histórias maiores de Ecos, as histórias que nos apresentarão as três crianças que terão as vidas transformadas por tocarem a mesma gaita que Otto tocou para sair da Floresta Negra. A primeira história se passa em Trossingen, uma cidade entre os Alpes Suíços e a Floresta Negra, na Alemanha do ano de 1933, onde conhecemos Friedrich Schmidt: ele é um menino inteligente e talentoso que sonha em ser maestro, mas que sofre com os olhares questionadores de todos de sua cidade por ter nascido com uma grande mancha no rosto. Friedrich precisa aprender a lidar desde muito novo com os olhares discriminatórios de todos por quem passa na rua, inclusive colegas de escola, e se sentiria só se não fosse por sua família e seu maior amor, a música. A gaita chega às mãos de Friedrich de maneira inusitada e, a partir de então, o menino a carrega para todo o canto, sempre sentindo uma conexão especial quando toca com ela alguma melodia. O que Friedrich não esperava é que seu sonho de ser maestro pudesse ser interrompido pela ascensão do nazismo na Alemanha, o que mudaria toda a sua vida e as certezas que tinha para o futuro.

A trama de Friedrich é narrada por Pam Muñoz Ryan de maneira intensa, sendo possível ao leitor sentir toda a angústia do menino que precisa lidar com a ascensão de um partido político que o vê como sujo e impuro por conta de sua mancha de nascença. Além de conviver com os olhares discriminatórios de boa parte dos moradores de Trossingen, Friedrich passa a temer por sua vida e pela segurança de sua família, que se torna alvo do partido nazista por, justamente, não querer se envolver com tais ideologias. A gaita o acompanha em todos esses momentos de angústia e, em um desfecho que deixa muito para a imaginação, perdemos contato com Friedrich assim como com a gaita que contém os espíritos de Eins, Zwei e Drei.

“Perguntas vagaram em sua mente: seu rosto era um crime? Ele não era nada mais que sua mancha e uma doença que nem tinha mais? O que aconteceria se os nazistas o considerassem medonho demais?”

Em junho de 1933, nos Estados Unidos, é a vez da gaita chegar às mãos de Mike Flannery. Ele e seu irmão mais novo vivem em um orfanato desde que sua avó faleceu e sonham com o dia em que poderão ter uma família novamente, nem que seja apenas os dois indo a concertos em Nova York e tomando sorvetes na sequência. Enquanto Mike é sério e preocupado com o futuro, seu irmão mais novo, Frankie, ainda mantém o frescor da infância, subindo em árvores e ignorando o toque de recolher do orfanato apenas para dar um alô ao irmão mais velho na sede das crianças maiores. Um é tudo o que o outro tem no mundo e fica evidente o quanto se amam e se querem bem, principalmente quando a Mike é oferecida possibilidade de que, sozinho, as chances de Frankie ser adotado são muito maiores do que com o irmão mais velho a reboque — e ele, com alguma relutância, começa a entender que essa é toda a verdade de que precisava. É uma decisão difícil de ser tomada, mas Mike prefere que Frankie esteja saudável e bem cuidado em uma família amorosa ainda que isso signifique que precisem ficar separados.

Ecos

Mesmo na pobreza em que viviam, a avó dos meninos os ensinou a tocar piano nos intervalos das aulas que ela dava para as crianças da vizinhança. Com o avanço da depressão econômica nos Estados Unidos, os alunos de piano vão sumindo e por fim restam apenas Mike e Frankie. Mike sempre encarou as aulas com dedicação e logo fica claro o talento que o menino tem para a música, sendo considerado um prodígio ainda tão novo. Com a morte da avó e a ida para o orfanato, Mike aceita a gaita e encara o instrumento como um passaporte para uma vida melhor para ele e seu irmão. A gaita parece evocar sensações únicas quando Mike a toca e a magia contida no instrumento se entrelaçará à vida do menino de maneira irrevogável. Enquanto luta para sobreviver em um ambiente em que os cuidados mínimos são ignorados e a única função dos órfãos é gerar dinheiro para a diretora do orfanato, Mike precisa se apegar a qualquer gota de esperança que possa surgir — o que aparece na possibilidade de uma adoção. Assim como na história de Friedrich Schmidt, vemos como Pam Muñoz consegue inserir em sua narrativa um tema pesado, tratando-o com delicadeza e naturalidade. Sofremos junto com os irmãos Flannery e torcemos para que o melhor aconteça com eles, mas, assim como os ecos que a música da gaita produz quando é tocada, só podemos torcer para que os sons reverberem e algo de bom aconteça para Mike e Frankie.

“Durante todo o trajeto, ele se sentiu como um pássaro selvagem preso em uma casa, voando para cima e para baixo, chocando-se nas paredes, as asas batendo nas janelas, tentando encontrar uma saída.”

Em 1942, no sul da Califórnia, é a vez da gaita chegar às mãos da pequena Ivy Lopez. Filha de imigrantes mexicanos, Ivy e a família vivem se mudando para onde a mão de obra do pai é necessária, principalmente na época das grandes colheitas. É a Segunda Guerra Mundial e passou-se apenas um ano do ataque à base de Pearl Harbor, e ao pai de Ivy é oferecido um trabalho em uma fazenda que pode se tornar fixo, fazendo com que a família deixe de se mudar a cada período de colheita em busca de trabalho. Dessa maneira, Ivy e seus pais começam a cuidar da fazenda de uma família de japoneses, os Yamamoto, que, após o ataque à Pearl Harbor, foram enviados a um campo de concentração dentro dos Estados Unidos. Em seu novo lar, além de precisar aprender a lidar com a saudade do irmão que está na guerra, Ivy também tem que enfrentar o racismo institucional contra os imigrantes latinos: ainda que Ivy seja norte-americana de nascimento e fale inglês perfeitamente, ela e outras crianças filhas de imigrantes são forçadas a frequentar uma escola especial e separada das outras crianças com o intuito de serem “americanizadas”.

Assim como os donos anteriores da gaita — Friedrich Schmidt e Mike Flannery —, Ivy encontra refúgio, coragem e força na música, dedicando-se a aprender novas canções enquanto guarda um grande segredo dos Yamamoto. Cada uma das crianças é afetada de uma maneira pela magia da gaita e das três irmãs que nela vivem, moldando seus caminhos para um desfecho surpreendente. É fácil ser arrebatada pelo poder das histórias dos três protagonistas, cada um deles tão bem escritos. Torcer por finais felizes vem tão fácil quanto uma melodia assobiada. Friedrich, Mike e Ivy, embora crianças, demonstram força, bravura e gentileza únicas para a idade, transformando-os nos heróis das próprias histórias e senhores de seus destinos.

“Lágrimas quentes rolaram pelo seu rosto. Ela saiu da cama, pegou o casaco de Fernando no armário e o colocou. Pela primeira vez desde que o ganhara ela o usou para dormir. Como manteria sua família unida, quando ela quem estava um pouquinho despedaçada?”

Ecos é um livro que, ainda que trate de temas pesados como guerra e racismo envolvendo crianças, aproveita-se de seus personagens bem construídos para contar histórias incrivelmente doces. Mesmo que as crianças passem por momentos difíceis e que o final pareça inevitavelmente triste, chegar até a última página dessas histórias dará uma satisfação enorme e deixará o coração do leitor quentinho. Pam Muñoz Ryan foi capaz de reunir em um mesmo livro a doçura da infância mesclada com a dura realidade da guerra e de uma grande crise econômica criando, dessa maneira, uma fábula dos nossos tempos. A escrita da autora encaixa-se perfeitamente com a história que pretende contar, incorporando os pensamentos infantis e traduzindo de maneira perfeita o sentimento de cada um deles — o medo, a insegurança, a quase impotência de ser criança em um mundo de adultos. “Além do mais, todos precisam da beleza e da leveza da música”, principalmente “durante as piores épocas.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


** A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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1 comentário

  1. Eu também amei esse livro! Foi difícil passar da primeira parte, da propaganda nazista, mas depois era lágrima depois de lágrima! ❤

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