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Debbie Reynolds e Carrie Fisher: o elogio ao imperfeito

Na semana em que perdemos Carrie Fisher e Debbie Reynolds quase ao mesmo tempo, eu chorei como há muito não fazia, desde que perdi um dos meus ídolos, Larry Hagman, no meio da série que ele estrelava, Dallas. Para mim, o que Carrie e Debbie tinham de melhor vai além do talento inegável para as artes. A relação entre elas era e é um dos motivos pelos quais eu as amava/amo tanto.

Debbie e Carrie são uma espécie de Rory e Lorelai Gilmore vindas de uma série de televisão chamada vida real. Mãe e filha que nunca fizeram questão de serem perfeitas porque não é assim que as coisas funcionam. Nem o dinheiro ou a fama tornaram as coisas mais fáceis para elas, e a partir do relacionamento que as atrizes mantiveram, com seus momentos de guerra e trégua, podemos ter uma ideia de como o estrelado influencia e afeta as relações entre mães e filhas.

Debbie Reynolds e Carrie Fisher não escaparam às pressões sociais, muitas vezes potencializadas pela fama. Então o que elas fizeram? O limão ácido se transformou em uma deliciosa limonada, mas por vezes amarga, com sabor de fama e maternidade em Hollywood.

Um verdadeiro produto de Hollywood

Carrie Fisher nasceu na época hoje que hoje conhecemos como a Hollywood clássica. Apesar de estar se aproximando lentamente do declínio no ano de seu nascimento (1956), a influência do cinema na vida das pessoas ainda era notória. Grandes estúdios, como a MGM e a Warner Brothers, ofereciam muito mais que filmes: essas companhias criavam estrelas, símbolos da visão do que era socialmente bem aceita. Debbie Reynolds e Eddie Fisher, pais de Carrie, contribuíram para esse sistema na medida em que foram vistos como o casal queridinho da América. Eles eram o que se esperava dos jovens casais: casamento, sucesso e filhos.

Assim, quando os filhos de grandes estrelas nasciam, havia uma grande expectativa. Das mães era esperado que conseguissem lidar com duas imagens: a da mãe e a de atriz. A corda bamba pela qual uma atriz andava era potencializada com a maternidade. De um lado, havia uma imagem a zelar, imaculada; do outro, a fama, o dinheiro e tudo o que a tornava tão atraente em sua profissão.

Às vezes, ceder significava abrir a casa para as famosas revistas de fofoca, que detinham grande influência sobre o público. Em uma reportagem de 1958, a revista Modern Romances acompanha o cotidiano da família Fisher-Reynolds, agora com mais um novo integrante: o bebê Todd. Com descrições carameladas e puxações de saco — como “Debbie Reynolds estava comendo um saco de batatinhas, ela é tão magra que não precisa se preocupar com dietas” —, escondia-se o verdadeiro objetivo dessas matérias: fiscalizar se a atriz conseguia ser uma boa mãe tanto quanto era uma boa atriz e celebrar a família tradicional. Em troca, ganhava-se prestígio, publicidade e respeito.

Ainda que Hollywood fosse tolerante com mães, solteiras ou não, cedo ou tarde ela cobrava seu preço. Mãe de uma linda menina chamada Cheryl, a atriz Lana Turner, contemporânea a Debbie, sofreu com o julgamento do público que a amara até a filha ser acusada de assassinar o padrasto, Johnny Stompanato, depois de anos sendo abusada por ele. Lana, inclusive, sofreu violência doméstica durante todo o relacionamento com Johnny, mas a culpa só podia ser de Turner. Conhecida por suas farras (o estúdio estava sempre tentando encobrir suas noitadas), a atriz escolheu manter uma vida normal mesmo após se tornar mãe, e pagou caro por isso. O público pensava que, se ela não tivesse sido uma mãe ausente, talvez o curso dos acontecimentos não fosse o mesmo. Falida e na miséria, Lana caiu no ostracismo até ressurgir das cinzas no filme Imitação da Vida.

Debbie também pagaria o preço pela maternidade, mas só muito mais tarde. Quando os problemas mentais de Carrie vieram a público, é claro que a mãe seria considerada responsável. Sua ausência por longos períodos nos quais se apresentava em shows em Las Vegas foi a causa de muitos dos complexos que Carrie desenvolveu em vida. Para o público, a garota não passava de um hollywood brat [pirralho de hollywood] e prova de que, no fundo, estrelas dificilmente conseguiam criar os filhos porque a preocupação com as próprias carreiras ultrapassava qualquer sentimento materno.

A literatura escrita por filhos de grandes estrelas sobre as relações com seus progenitores é vasta. Não nos cabe julgar a veracidade dessas narrativas; o ponto é como o público se vale dessas histórias para desacreditar, sobretudo, essas atrizes — aos pais, afinal, toda ausência é perdoada. Joan Crawford talvez seja o exemplo mais forte dessa máxima. Christina, uma de suas filhas adotivas, escreveu Mamãezinha Querida, onde expôs a relação abusiva que mantinha com a mãe. Com isso, Crawford transformou-se na Mamãezinha, e todo seu legado foi para o ralo. O mesmo tratamento não é dispensado aos homens. Não se é tão feroz com Alfred Hitchcock — ele é, afinal, Alfred Hitchcock. Joan Crawford, por outro lado, era Joan Crawford e poderia ter feito o que estava escrito naquele livro. Uma artista em Hollywood acusada de qualquer coisa pode esperar a destruição de sua carreira, enquanto um artista tem o benefício da dúvida com o público. À Debbie, Lana e outras tantas outras mães de Hollywood o benefício da dúvida jamais foi concedido.

Tão diferente, tão igual

Ao mesmo tempo em que a fama pode ter destruído parte do relacionamento entre Debbie e Carrie, ele também trouxe a redenção para ambas. Aos 19 anos, assim como a mãe, Carrie experimentou na própria pele o que era ser o ícone de uma geração com Star Wars. Como Kathy Selden de Cantando na Chuva, a Princesa Leia não era um papel qualquer num filme qualquer.

A palavra ícone pressupõe algo fora de realidade, um objeto de adoração. Quando a Princesa Leia recebeu esse título, Carrie foi marcada para ela. Como anos mais tarde viria a declarar no livro The Princess Diarist, a personagem tornou-se parte dela. E, nesse ponto, acredito que o apoio de Debbie (que era contra o filme e chegou a discuti-lo com George Lucas por telefone) foi essencial para que Carrie conseguisse lidar com esse mundo tão diferente para ela, mas já um velho conhecido da mãe.

Há muito o que celebrar no relacionamento entre essas mulheres: o respeito, a admiração e a cumplicidade mútuos. Debbie e Carrie compartilharam conosco suas experiências enquanto mãe, filha e avó. Nem sempre foi fácil, nem tudo foram flores, mas elas provaram que rir daquilo que poderia ter sido uma história trágica de Hollywood, com mexericos, traições e problemas familiares, continua a ser o melhor remédio. E nos convidaram a rir com elas. Memórias de Hollywood é um filme inspirado no filme homônimo de Carrie, que conta a história sobre a relação de mãe e filha entre as personagens de Shirley MacLaine e Meryl Streep. A mãe é famosa; a filha também, mas a última sente-se apagada diante da mãe. Até que ponto a história é ou não uma versão da vida de Fisher e Reynolds? Não sabemos. O que sabemos é que as semelhanças são muitas, muitas delas envolvendo fatos similares a acontecimentos da vida de Carrie ou de sua mãe.

Já o documentário Bright Lights: Starring Carrie Fisher and Debbie Reynolds, que estreou no dia 7 de janeiro na HBO, retrata aquilo que não podemos especular: a realidade. Talvez seja a chance puxar o que falta de trás da cortina que envolve uma relação tão fascinante. Mas, no fim das contas, o maior legado que essas mulheres deixam é a certeza de que relações entre mães e filhas nunca é perfeita, e não há problema nisso. Cada vez que revejo as entrevistas das duas, sou invadida pelo sentimento de alívio. Em um mundo que nos obriga a acreditar que a maternidade é uma experiência indolor para as mulheres, Debbie e Carrie são uma espécie de resistência, a prova de que há muito mais por trás das palavras mãe e filha.