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Dear White People e os muitos porquês do movimento negro

Releitura do filme homônimo, Dear White People é uma das séries lançadas pela Netflix em abril. Assim como 13 Reasons Why, a intenção da série é tratar de problemas comumente ignorados pelos meios de comunicação e por vários setores da sociedade. No caso da trama “Cara Gente Branca”, o que se pretende denunciar é o racismo institucionalizado e estrutural, o contrário da ideia de sociedade “pós-racial” que alguns acreditam existir.

Pretendendo falar de racismo e provocar as camadas mais privilegiadas da sociedade, a série mostrou a que veio desde o lançamento do seu primeiro teaser. Assistindo a prévia de pouco mais de um minuto disponibilizada pela Netflix para a divulgação, grupos de assinantes do sistema de streamming sentiram-se ofendidos com a sátira e ameaçaram boicotar o serviço alegando racismo reverso. O motivo? No vídeo, Samantha White (Logan Browning), a líder de uma das organizações de militância negra do campus, aparece comandando seu programa de rádio e afirmando de forma debochada e certeira que suas feições de negra não são uma fantasia de Halloween, indo contra a prática de blackface como forma de caracterização nas festas da Universidade.

Apesar do título que destaca “white people” (pessoas brancas), o seriado deixa claro desde suas primeiras cenas que a história a ser contada não é sobre pessoas brancas. Ambientada nos Estados Unidos, a série se passa em uma fictícia faculdade de elite, a Universidade de Winchester, e tem como enredo os conflitos vivenciados por alguns dos alunos e alunas negros da instituição. O título polêmico da série é o mesmo do programa de rádio comandando por Sam, que utiliza a introdução “Caras pessoas brancas” para denunciar de forma bem-humorada o racismo institucionalizado em diversas camadas da sociedade e também presente no campus.

Feita para falar sobre a vivência de jovens negros, e escrita, dirigida e idealizada por pessoas não-brancas, Dear White People se destaca por seu formato enxuto e maneira única de abordar assuntos doloridos à comunidade negra com críticas contundentes disparadas com muito humor, ironia e sem nunca pesar a mão na sátira. Com inteligência, os dez episódios da série abordam não só conflitos e relações entre negros e brancos, mas aprofunda seu debate construindo personagens pertencentes à mesma raça, porém plurais. Criar um estereótipo comum a um grupo é problemático? Não quando se trata de uma sátira direcionada a grupos socialmente dominantes. A proposta de Dear White People é justamente inverter os papéis: não se aprofundar nos brancos, enquanto diferencia e humaniza os jovens negros.

Dear White People

Vocês realmente acharam que essa série é sobre vocês?

Para começar: praticamente todo o elenco principal de Dear White People é negro. Dentre os personagens principais, somente um, Gabe Mitchell (John Patrick Amedori), é branco. As demais pessoas brancas da série são tratadas à distância, de forma caricata e quase sempre muito semelhantes. As mulheres — com exceção de um grupo de feministas que aparece em alguns dos episódios — têm uma preocupação excessiva com a aparência e sonham encontrar um homem perfeito. Em uma das cenas, uma delas chega a afirmar que não namoraria um homem negro, mas não por ser racista. Sua amiga concorda e, em defesa própria, usa como provas de que não se trata de racismo o fato de que “pegaria” o Drake e de ter um dildo com nome que faz referência a um ator negro, Idris Elba. Já os homens brancos vivem pelos esportes, bebida e festas — o combo dos clássicos pastelões americanos.

Outra característica dos brancos de Dear White People, especialmente retratada pelo personagem Kurt Fletcher (Wyatt Nash), editor da revista Pastiche e idealizador da festa blackface, é o fato de relativizarem o racismo. Essa parte dos personagens acredita que o preconceito racial foi superado ou que é possível que ele exista de maneira reversa  —  sim, acreditando na possibilidade de que negros sejam racistas com brancos.  A principal crítica direcionada ao programa de rádio comandado por Sam é feita justamente nesse sentido: para a parcela da sociedade criticada por esse produto de mídia, trata-se de uma produção que estereotipa pessoas brancas, postura negativa semelhante à adotada pelos assinantes da Netflix que anunciaram boicote ao serviço.

Sobre essa questão, a própria Sam evidencia as diferenças entre os estereótipos dirigidos a “minorias sociais” e sátiras que têm como alvo públicos dominantes da sociedade. A diferença é que piadas com negros matam, piadas com brancos só subvertem, momentaneamente e de maneira quase insignificante, o poder.

Em algumas cenas, as falas dos personagens brancos sobre racismo se parecem com o que vemos em comentários do Facebook. Falam de raiva à toa, da necessidade de superar o período escravocrata, de censura à liberdade de expressão. Culpam os movimentos negros da Universidade por serem os verdadeiros responsáveis pela tensão racial instalada no campus, reforçando a ideia de que a verdadeira solução para o racismo é ignorar o assunto. Tudo muito parecido com o que rola aqui no Brasil quando o assunto é a pauta dos movimentos negros.

Dear White People

Obviamente, existem exceções e a própria série tenta representar pessoas brancas capazes de reconhecer seus privilégios. Gabe, o namorado de Sam, é o único personagem branco retratado de maneira mais profunda pela série, simbolizando o grupo de privilegiados que não se encaixa entre os American Pie da faculdade. O interessante é como Dear White People não tem a pretensão de colocá-lo como o paladino da igualdade racial no campus e o trata, também, como um jovem cuja existência é permeada pelo racismo estrutural. Há cenas em que o inconsciente de Gabe Mitchell deixa transparecer pequenos racismos do dia-a-dia, como no momento em que presume que Reggie irá usar a força física contra ele em meio a um debate ou nas vezes em que se irrita silenciosamente por experimentar pela primeira vez na vida a sensação de ser generalizado. Sua vontade mais íntima é de soltar o brado retumbante: MAS NEM TODO BRANCO!

Porque preto não é tudo igual

Aquela sua conhecida negra muito provavelmente não se parece com a Taís Araújo e seu amigo da pele preta não guarda nenhuma semelhança física com o Thiaguinho, é o que diz — guardando as devidas referências estadunidenses — Dear White People. Preto não é tudo igual nem na aparência, nem na personalidade e nem na história de vida. Na série, os cinco personagens principais cuja história é esmiuçada em capítulos individuais — Sam, Lionel, Coco, Troy e Reggie — são pessoas diferentes desde o corte de cabelo até as inclinações políticas.

Um dos primeiros momentos em que tal pluralidade é mostrada no seriado é quando Sam apresenta ao aspirante a jornalista Lionel Higgins (DeRon Horton) as diferentes articulações da militância negra dentro do campus. De forma satírica, a cena serve como amostra dos diferentes movimentos negros presentes na sociedade, pontos de vista diversos sobre a luta de raça e os próprios conflitos e tensões presentes nas várias formas de se fazer — ou não — politicamente ativo na discussão racial.

O contraponto que mais chama a atenção é entre os jeitos de interferir nas estruturas da sociedade adotados por Sam e por Coco. Com perfil mais combativo e escancaradamente militante, Sam parte da atividade política que tem por objetivo denunciar o racismo em todas as suas instâncias, deixando a ferida aberta para quem quiser ver. Já Coco Conners (Antoinette Robertson), adota um estilo de atividade política sutil, penetrando nas instituições tradicionais e adotando como lema a máxima “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. As divergências entre as duas são bem explicadas durante os episódios de Dear White People: elas vêm de trajetórias diferentes e experimentam olhares diversos por parte da sociedade já no primeiro contato, a cor de suas peles guarda diferenças.

Dear White People

Sem dúvidas um dos maiores acertos da série é trazer à tona a questão do colorismo e como a diferença de tons de pele negra influencia na experiência desses indivíduos em sociedade. A regra é simples: quanto mais claro o indivíduo, mesmo que sempre negro, mais privilegiado ele é em relação a outras pessoas de pele escura. No Brasil é fácil observar como isso se dá, por exemplo, no padrão de beleza: as chamadas “mulatas”, mulheres mestiças com influência direta da genética negra e branca, gozam de algum prestígio estético — diga-se de passagem, bem sexualizado — enquanto pretas mais escuras são olhadas com desprezo quando se fala em beauté.

Ainda para além do que é público e político, a construção dos três homens negros protagonistas da série também chama a atenção. Lionel, Reggie e Troy são diferentes em quase todos os aspectos. Troy Fairbanks (Brandon Bell) é, à primeira vista, o estereótipo do negro sexualizado de corpo musculoso e poucas emoções. No decorrer de sua história, no entanto, demonstra conflitos emocionais internos, como na relação com seu pai, e deixa transparecer o bloqueio de vulnerabilidade exigido do homem, principalmente se ele for negro.

Reggie Green (Marque Richardson) é outro personagem que foge ao estereótipo de negro que resolve seus problemas usando os punhos. O estudante é um intelectual, tem cérebro extremamente privilegiado e se destaca, aparentemente, em todas as áreas do conhecimento. Criado numa família de militantes, aprendeu desde cedo que seria necessário fazer valer seus direitos e, durante a série, é o companheiro mais fiel de Sam no seu estilo de ativismo combativo.

Negro, gay, observador atento e homem poucas palavras, Lionel claramente também não é um estereótipo. Com dificuldade de se reconhecer dentro da própria comunidade negra por sua sexualidade não-normativa e corpo magro e diminuto, o personagem se apresenta como uma pessoa que não está integrada a nenhum grupo social. No decorrer da trama, se envolve com a militância por meio da escrita em um dos jornais da Universidade, e vive momentos de vulnerabilidade emocional e descobrimento de si mesmo pouco abordados em produtos da cultura pop. Se o homem negro é visto como símbolo de força e virilidade, a existência de indivíduos pretos e homossexuais é incoerente com o que se espera. Um drama da vida real ainda mais forte do que aquele experimentado por LGBTqi+ de pele branca.

Dear White People

Cara gente branca, é hora de reconhecer seus privilégios

Capaz de discutir essa e outras questões com humor e por diferentes perspectivas, Dear White People é um debate mais do que necessário. A série trata de nuances dos movimentos negros desconhecidas aos leigos, faz com que a gente entenda o peso do padrão estético branco, o peso do racismo institucional e estrutural e o quanto ações cotidianas ferem a autoestima e a dignidade dos jovens negros de maneira indireta.

O seriado também trata de porquês. No entanto, quase ninguém tem falado de Dear White People. Por quê? Porque no fim das contas, a carne negra continua sendo a carne mais barata do mercado e suas feridas não causam comoção.

A série acerta por abordar o racismo sutil do dia a dia, o preconceito que não finda vidas imediatamente, mas constrói a base de toda a violência. O racismo que não corta sinais vitais com injeção letal, mas a dose de veneno que mata aos poucos sem se ver. Vale as horas de diversão e reflexão.

Crítica escrita em parceria por Laura Máximo e Paula Maria.

2 comentários

  1. Cara gente branca, eu acho q a maioria de voces deveriam assistir a essa serie.

  2. “O seriado também trata de porquês. No entanto, quase ninguém tem falado de Dear White People. Por quê? Porque no fim das contas, a carne negra continua sendo a carne mais barata do mercado e suas feridas não causam comoção”
    Como minha professora sempre menciona, é a tal da “indignação seletiva”. Digo como autocrítica também. É preciso entender nossos privilegios enquanto brancos e a injustiça racial acobertada sistematicamente. Lembro mt tbm daquela professora do Chris (todo mundo odeia o Chris) que em meio a um “discurso pós-racial” continuava sendo racista sem ss dar conta. Acho bastante recorrente no nosso dia a dia.

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