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As Crônicas de Amor e Ódio: a jornada de Lia

Em um primeiro momento pode parecer que As Crônicas de Amor e Ódio, trilogia da norte-americana Mary E. Pearson, se trata de mais uma famigerada história de princesas. Lia é filha do rei e da rainha de Morrighan e, como Primeira Filha e soldado de seu reino, tem um dever: se casar com o príncipe Jaxon de Dalbreck a quem foi prometida em um antigo acordo. Lia, no entanto, não quer se casar com alguém que não conhece — e, portanto, não ama — e decide tomar as rédeas da situação no lugar de ser um simples peão no jogo de pessoas mais poderosas do que ela.

Essa é a premissa da trilogia As Crônicas de Amor e Ódio, lançada no Brasil pela DarkSide Books em mais um belíssimo trabalho de curadoria, diagramação e design. Os três livros que compõem a coleção — The Kiss of Deception, The Heart of Betrayal e The Beauty of Darkness — contam, em mais de 1300 páginas, a história da jornada de Lia, sua busca por liberdade e tudo o que ela descobre pelo caminho, tanto em relação ao mundo em que vive, seu papel nele, e a força e coragem que não fazia ideia de que possuía.

The Kiss of Deception

“E quanto mais eles me moldavam, me empurravam e me silenciavam, mais eu queria ser ouvida.”

O primeiro livro da trilogia de Mary E. Pearson entrega um mundo novo onde pequenas dicas e explicações são dispostas em torno do enredo, prendendo a atenção do leitor do começo ao fim. Uma trama de fantasia em um mundo fictício como Morrighan requer algum cuidado e atenção, visto que tudo é explicado, sim, mas em pequenas doses, deixando quem acompanhada a história de Lia sempre curioso e sedento por mais. Fantasia é meu gênero favorito na literatura e gosto muito quando autores tomam cuidado ao criar seu universo, inserindo detalhes como línguas diferentes, canções e lendas — tudo que sirva para deixar esse mundo mais crível. Em As Crônicas de Amor e Ódio isso existe de sobra: a autora delineia com cuidado um universo místico onde um povo escolhido e guiado por uma menina encontra sua força em uma profecia.

Lia está prometida em matrimônio ao príncipe Jaxon de Dalbreck, mas não está em seus planos imediatos se tornar esposa de alguém que não conhece. Assim, junto a sua melhor amiga, Pauline, Lia foge da cidade de Cívica, capital de Morrighan, para Terravin, uma cidade litorânea distante da corte e que parece ideal para um recomeço. O que Lia não imaginava ao fugir, no entanto, é fosse despertar a curiosidade — e irritação — do noivo abandonado no altar: o príncipe Jaxon não consegue acreditar na audácia da princesa em romper um acordo maior do que ela e fugir de um casamento forçado, coisa que nem ele fora capaz de fazer. Ele, então, decide ir atrás da princesa para conhecê-la e entender um pouco da mulher que o deixou plantado à espera de um casamento que não aconteceu.

Quem também está em busca da princesa é seu pai, rei de Morrighan, que coloca seus guardas e o filho mais velho no encalço da filha, já que a quebra do acordo pode afetar seriamente as boas disposições entre Morrighan e Dalbreck. O que nenhum deles sabe, porém, é que uma terceira peça está se movendo em direção à Lia: um assassino bárbaro de Venda também está em busca da princesa, mas não movimento por curiosidade ou desfeita. Sua função é clara: assassinar lia e impedir que futuras alianças entre os dois reinos floresça, atrapalhando os planos do líder de Venda, o Komizar, de conquistar todos reinos.

O mais interessante em toda a narrativa é que não saber quem é o príncipe e quem é o assassino nessa história, e enquanto intercalamos entre os pontos de vista de Lia e dos outros dois, a trama fica cada vez mais intricada e cheia de segredos e mentiras de todos os lados. Esse artifício, usado com maestria por Mary E. Pearson, nos faz mudar de opinião o tempo todo, nunca sabendo ao certo quem é o príncipe e quem é o assassino, nos levando a pensar que, às vezes, erros e acertos mudam dependendo da perspectiva.

Outro ponto importante da trilogia é a força das personagens femininas, visto que são elas que fazem a história girar. Primeiramente, claro, na figura de Lia, a princesa de nome comprido — Arabella Celestine Idris Jezelia — que decide que, depois de anos vivendo de acordo com as normas da corte, vai, finalmente, ser senhora do próprio destino. Lia acredita piamente que seu recomeço em Terravin era o que precisava para viver de acordo com suas próprias regras, mas uma série de acontecimentos maiores do que ela a levam a perceber que não importa a distância que esteja de Cívica e da corte, ela sempre será a princesa Arabella, Primeira Filha de Morrighan e, portanto, sempre terá deveres a cumprir. Isso fica claro quando, no decorrer da narrativa, percebemos o crescimento e amadurecimento da protagonista: quando fugiu de um casamento que não desejava, Lia nutria apenas o desejo de controlar a própria vida, mas quando chegamos ao final de The Kiss of Deception percebemos junto dela que há coisas contra as quais é impossível lutar. Não é possível para ela ser apenas Lia, e seus deveres para com Morrighan sempre estarão ocupando um lugar de importância em seu coração.

Além de Lia, há também Pauline, a melhor amiga da protagonista, outra personagem carismática e pela qual fica fácil torcer. Embora seja uma sidekick, Pauline não fica relegada ao posto de suporte — ela tem a própria história, conflitos, dilemas e sonhos, o que deixa sua jornada ao lado da princesa ainda mais completa. Pauline sabe de todos os riscos que corre ao fugir com Lia, e sabia que a punição seria mais severa com ela, mas nada a dissuadiu a abandonar a melhor amiga. Em um mundo que reúne boas doses de fantasia, suspense, romance e intrigas, faz a diferença ver uma amizade entre mulheres tão forte e verdadeira. Mary E. Pearson acerta ao colocar Lia na linha de frente de uma trama intensa e intricada, e fazer de Pauline a melhor amiga que uma princesa em fuga poderia desejar.

O livro possui sua dose de romance, e um quase triângulo amoroso entre Lia, o príncipe e o assassino, mas nada soa forçado e fora do lugar. Nos apaixonamos por casa um deles tanto quanto Lia e, diferente de outras obras de fantasia, em que a protagonista tem que decidir com qual dos dois seres sobrenaturais decide ficar, Lia não perde muito tempo em conflito, tendo como certo o que deseja assim que descobre seus sentimentos. The Kiss of Deception é um livro perfeito para a abertura de uma trilogia impactante, divertida e apaixonante.

The Heart of Betrayal

“Eu tinha sido silenciada vezes demais por aqueles que exerciam poder sobre mim. Não aqui. Minha voz seria ouvida, mas eu haveria de falar apenas quando isso servisse aos meus propósitos.”

O segundo livro de As Crônicas de Amor e Ódio continua a acompanhar a jornada de Lia e, com o crescimento da personagem durante o primeiro volume da trilogia, a princesa se encontra mais forte, atenta e treinada no perigoso jogo em que se vê contra sua vontade. The Heart of Betrayal é um livro mais sombrio do que o primeiro. O cenário hospitaleiro de Terravin e deixado para trás e migramos para uma jornada longa, cansativa e perigosa por um deserto inóspito em direção ao reino de Venda, inimigo de Morrighan e Dalbreck.

Criada durante toda a sua vida na corte em Cívica, é a primeira vez que Lia atravessa as fronteiras do reino e passa a conhecer o que há de bom e ruim no mundo. Mesmo vivendo uma nova experiência no tempo em que passou em Terravin, fingindo ser uma moça comum que trabalha em uma taverna, Lia compreende, pela primeira vez, que há muitas mentiras nas lições que aprendeu na corte. Venda sempre foi descrito como um reino bárbaro e selvagem, mas o que Lia descobre quando é levada até lá é que há beleza no inesperado e desconhecido.

Diferente dos seus conterrâneos, ou mesmo do príncipe de Dalbreck, Lia consegue enxergar sentido nos rituais e nas maneiras simples do povo de Venda que, mesmo em meio à ditadura do tirano Komizar, consegue levar uma vida digna e honesta. Em seu tempo em Venda, Lia descobre que há mais para ser dito do que o banho de sangue promovido pelo exército e que existe, sim, vida em uma terra, a princípio, inóspita e inimiga declarada de Morrighan. Para toda história há dois lados e Lia consegue ver tudo isso enquanto reside em Venda como prisioneira e começa a se integrar à cultura daquele povo ao partilhar de seus costumes e das vestimentas especiais dos clãs que compõe o reino.

Um ponto interessante nesse segundo livro é que a mitologia de As Crônicas de Amor e Ódio fica cada vez mais complexa e ajuda a marcar o passo do enredo: Lia descobre mistérios sobre os três reinos — Morrighan, Dalbreck e Venda — e como as histórias de três mulheres foram essenciais para a fundação de cada um deles, muito tempo atrás. Na medida em que Lia desenterra histórias e aprende a usar seu dom, muito da origem dos reinos é desvelada, o que eleva a trama a um outro nível. Mulheres não apenas fazem parte da fundação dos reinos como serão responsáveis por salvá-los da ruína iminente. Quando Lia finalmente compreende seu papel, sua determinação é renovada, e ela faz o que é necessário não só pelo bem de Morrighan, sua terra natal, mas também pelo de Venda e Dalbreck.

Se em The Kiss of Deception Lia soa como uma menina mimada que quer fugir de suas obrigações, em The Heart of Betrayal ela se mostra uma mulher corajosa e determinada. Não há nada que possa ficar entre Lia e seu desejo de proteger os reinos e as pessoas que nele vivem, e para isso ela arriscará a própria vida. Tinha que ser alguém. Por que não ela? A princesa aceita seu destino e, como peça fundamental para a sobrevivência dos reinos, ela se entrega de corpo e alma à missão. Com uma fuga ousada e uma reviravolta magistralmente orquestrada por Mary E. Pearson, The Heart Betrayal coloca todas as fichas na mesa ao mostrar o crescimento da protagonista, seu coração e a força renovada.

The Beauty of Darkness

“Você é forte, mais forte do que sua dor, mais forte do que seu pesar, mais forte do que eles. E eu me forço a ficar de pé de novo”.

O final da trilogia As Crônicas de Amor e Ódio é arrebatador: o destino dos três reinos estão nas mãos de Lia e nos poucos que se juntam a ela contra o exército comandado pelo Komizar, o maior já reunido por Venda. A cabeça de Lia está a prêmio e a princesa não é bem vista em Morrighan — tanto por ter abandonado o príncipe de Dalbreck no altar quanto por ter ido para Venda. Voltar para casa é arriscado, mas ela precisa tentar. Em jogo não está apenas sua vida, mas as vidas de todos com quem ela se importa: Pauline, o príncipe, o assassino, seus amigos de Terravin, seus pais e irmãos, e todos os moradores dos três reinos. Parece muito com o que se preocupar e um peso enorme para se colocar nas postas de apenas uma pessoa, mas Lia não pestaneja quando compreende sua função e faz o que está ao seu alcance para salvar a todos.

O entendimento de Lia a respeito de si mesma e do dom que carrega talvez seja a melhor parte da trama final de As Crônicas de Amor e Ódio: é comum livros de fantasia se aterem à jornada do herói, mas encontrar protagonistas femininas em um mundo de fantasia que tenham um crescimento consistente — e evidente — na trama é raro. A Lia que conhecemos em The Kiss of Deception não é a mesma Lia que encontramos em The Beauty of Darkness: a princesa que fugiu abandonando seu vestido de noiva pelo caminho agora usa uma armadura, empunha uma espada e vai à luta como qualquer soldado. É ela quem libera e encontra a melhor maneira de proteger Morrighan do ataque de Komizar, desbancando com sua vivência as teorias de homens mais velhos do que ela. Lia não se deixa abalar pelo pouco que é considerada por tais homens e faz valer sua posição, mostrando que idade e gênero não são validação para coisa alguma.

Mary E. Pearson consegue criar a história de uma princesa que não é uma donzela em perigo e que não fica à espera de resgate. Lia cria os próprios planos e meios de escapar e não se deixa abater pelas dificuldades que aparecem em seu caminho. A determinação em proteger os povos de Morrighan, Dalbreck e Venda a faz se colocar na linha de frente, lutando lado a lado com homens e soldados muito mais experientes do que ela por algo que acredita: que é possível que todos os reinos vivam em paz.

A não conformidade de Lia com o destino que lhe impuseram a faz sair em uma jornada difícil, longa e perigosa, mas que a faz crescer como mulher, colocando sob uma perspectiva completamente nova o que significa ser princesa e como é possível usar dessa posição para benefício de vários povos. A força e a resiliência feminina são trabalhadas durante toda a trilogia de maneira a mostrar ao leitor que, sim, mulheres podem se unir, podem ser amigas e podem ir à luta. Em um mundo de fantasia ou não, é importante contarmos histórias em que personagens femininas são completas e donas de si, dispostas ao impossível quando estão certas da tarefa que lhes cabe.

Toda a trilogia As Crônicas de Amor e Ódio é incrível ao retratar personagens verossímeis, mesmo que todos vivam em um mundo de fantasia. Lia ainda é adolescente e isso poderia ter levado a escritora a cair em clichês — muito comuns em livros YA —, mas o que encontramos nos livros de Mary E. Pearson é um grupo de personagens que possuem motivações, sonhos e vontades, que às vezes mais erram do que acertam mas não deixam de tentar. É inovador encontrar um enredo de fantasia que dê força à personagens femininas e as coloque em frente à ação, tomando as rédeas de suas vidas e fazendo aquilo que acreditam.

A jornada de Lia é a jornada de qualquer uma de nós quando precisamos nos conhecer melhor e entender aquilo que mora em nosso coração — talvez não tenhamos um príncipe ou assassino em nosso encalço, mas os dilemas de Lia (e de Pauline, e das outras mulheres da história) são comuns a cada uma de nós. O que queremos fazer com nossas vidas, o que sonhamos e desejamos conquistar em nosso futuro, como desejamos — e precisamos — ser ouvidas. Muito mais do que uma história de fantasia, As Crônicas de Amor e Ódio contam a história de uma mulher em uma jornada de autoconhecimento e descobertas sobre ela e o mundo em que vive, e como todo esse amadurecimento refletirá em suas decisões e ações. Lia é uma protagonista que reúne muita humanidade em seus erros e acertos, tornando a identificação com ela muito fácil e torcer por ela e sua felicidade, simples. Entre verdades e mentiras, amor e ódio, a princesa Jezelia encerra sua trajetória em The Beauty of Darkness mostrando uma evolução muito verossímil e completa. Livrando-se das amarras que a manteve presa por tantos anos, Lia mostra que uma princesa não liberta apenas a si mesma, mas também reinos inteiros.

O livro The Beauty of Darkness foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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