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Crítica: The Marvelous Mrs. Maisel

Após a pós-produção de Gilmore Girls: A Year in the Life, os sites de entretenimento americanos anunciaram que Amy Sherman-Palladino estava escrevendo uma nova série em parceria com a Amazon: The Marvelous Mrs. Maisel, cuja trama centrava-se em uma dona de casa dos anos 1950 que decide se tornar uma das primeiras mulheres a trabalhar com comédia stand up. A encomenda de um episódio piloto evoluiu para a encomenda de duas temporadas completas após a boa recepção da série no período de exibição de teste da Amazon que ocorreu em março de 2017, e em 29 de novembro do mesmo ano a primeira temporada foi disponibilizada pelo serviço de streaming. Mas o fato de a série ter recebido o sinal verde da Amazon por si só não diz muita coisa, então, tendo assistido os oito episódios que compõem a primeira temporada, a pergunta é: o que podemos realmente esperar de The Marvelous Mrs. Maisel?

Quando falamos de séries assinadas por Amy Sherman-Palladino, é difícil dissociá-la de sua criação mais famosa, Gilmore Girls. No painel da série que aconteceu no ATX Festival, no Texas, em 2015, com grande parte do elenco reunido, a própria Amy brincou que esse trabalho tinha sido certo em todos os aspectos, e se nada mais prosperasse em sua carreira, ela pelo menos teria isso. Gilmore Girls surgiu de uma ideia espontânea que Amy teve para encerrar uma reunião com o executivos da Warner Channel, que até aquele ponto não pareciam interessados nas outras ideias que ela estava tentando vender, mas instantaneamente se dispuseram a comprar aquela ideia de “uma série de uma mãe e uma filha que eram mais como melhores amigas do que mãe e filha”.

A ideia improvisada acabou se tornando um sucesso de sete temporadas, tão aclamada pela crítica e pelo público que retornou com um revival em 2016. Nesse meio tempo, Amy criou Bunheads para o canal ABC Family (atual Freeform), uma série sobre o cotidiano, os sonhos e os dramas de jovens bailarinas na cidade idílica de Paradise. É desnecessário dizer que  Bunheads não vingou. Embora adequada para o público-alvo do canal, a série tinha o defeito de ser uma cópia descarada da receita de Gilmore GirlsBunheads consistia em poucas alterações significantes e um elenco em boa parte reciclado, algo que os fãs não quiseram comprar porque para que perder tempo com uma imitação quando temos o original? Desde então, ficou no ar a dúvida da capacidade de Amy Sherman-Palladino surgir com uma série que se desprendesse da base de Gilmore Girls, e então recebemos The Marvelous Mrs. Maisel.

Atenção: este texto contém spoilers!

A história de Miriam “Midge” Maisel (Rachel Brosnahan) é introduzida por ela mesma nos primeiros minutos do episódio piloto, com o brinde que ela faz no próprio casamento — uma abertura bastante adequada, considerando que, nos episódios decorrentes, ela estará atrás de microfones contando passagens de sua vida de forma humorística na tentativa de arrancar risadas do público e se fixar na sua nova carreira. Foreshadowing, podemos dizer. Mas ali ela ainda era uma noiva contando como traçou o plano de sua vida com grande determinação até chegar a Joel Maisel (Michael Zegen), seu marido e grande objetivo como mulher típica da década de 50. Então, há um salto de quatro anos e Midge é a perfeita dona de casa. Ela administra seu apartamento no Upper West Side, em Nova York, seus dois filhos (um menino e uma menina!) e seu marido com maestria, de salto e saia rodada. Embora Joel trabalhe num escritório em horário comercial, como deve ser, ele tem o sonho de se tornar comediante, então, à noite, ele se apresenta em bares na tentativa de tornar a comédia sua principal profissão. Midge, é claro, está ao seu lado, preparando um assado para o dono do bar a fim de conseguir horários melhores para Joel, e anotando minuciosamente a recepção de suas apresentações. Até que, um dia, uma apresentação não vai bem, Joel se ressente de Midge, junta suas coisas (na mala dela) e vai embora de casa.

Desnorteada com a série de revelações do marido, que estilhaçam sua certeza de que a vida de ambos era perfeita e que eles se amavam, Midge sai do apartamento bêbada, de camisola e debaixo de chuva, e acaba voltando ao Gaslight, o bar onde Joel costumava se apresentar, onde invade o palco e acaba desabafando sua atual situação de mulher que foi largada pelo marido para o público da madrugada. Teria sido um episódio trágico e vergonhoso se a espontaneidade de Midge não tivesse sido um sucesso. Susie Meyerson (Alex Borstein), a bartender do local, nota em Midge um grande potencial para carreira na comédia, e acaba plantando a semente da ideia nela depois de pagar sua fiança na prisão. A Midge sóbria não demonstra interesse a princípio, até perceber que não sabe o que fazer da sua vida sem Joel. Depois de quatro anos cuidando exclusivamente de assuntos domésticos e familiares com um luxo extravagante, ela precisa reencontrar a adolescente sonhadora e determinada dentro de si para dar um novo propósito a sua vida e estabilidade para seus filhos, enquanto seus pais, dramaticamente escandalizados, e seu casal de amigos contam mentiras que justifiquem a ausência de Joel para colegas e conhecidos.

Joel, por sua vez, experimenta a liberdade por dois segundo antes de correr até sua amante para viver uma vida exatamente igual. Parece uma piada de extremo mau gosto assistir o marido abandonar a esposa para correr atrás de seu sonho, quando, na verdade, ao pisar fora de casa, sua vida permanece exatamente a mesma com a exceção de ele estar dormindo no sofá do amigo e assumindo o caso com sua secretária (para não deixar escapar o clichê). Ao mesmo tempo, é interessante ver a fraqueza da personalidade masculina sendo explorada na série, embora ela seja mais um ingrediente corriqueiro da receita de Amy Sherman-Palladino.

Tal como Christopher (David Sutcliffe) em Gilmore Girls, Joel Maisel não chega a ser um personagem de má índole, ele é apenas muito mal resolvido consigo mesmo. No entanto, por terem uma interligação crucial com as protagonistas, suas más escolhas e falta de fibra ao encarar determinadas situações acabam refletindo de maneira negativas nelas, o que causa bastante sofrimento, sim, mas é o impulsionador para a descoberta da liberdade delas. Lorelai (Lauren Graham) acabou por não precisar do pai de sua filha por perto para reconstruir sua vida e criar Rory (Alexis Bledel), assim como Midge vai descobrindo que existe vida pós-Joel, que ele não é o sol da sua galáxia. Claro que, pela época ser outra, ela precisa do suporte do seus pais para sustentá-la e proteger sua reputação, mas, na medida do possível, ela abandona suas obrigações anteriores e corre atrás da pouca independência que pode ter.

No meio desse processo, felizmente, ela pode contar com a nova amizade com Susie que, ao testemunhar o talento de Midge, passa a encontrá-la pontualmente para discutir a possível carreira dela na comédia, tornando-se a sua agente. Ao contrário de Midge, Susie não tem dinheiro, vem de uma família bagunçada, tem trejeitos masculinizados e um sarcasmo afiado. Embora ela tenha abordado Midge pela oportunidade de lançar um novo talento no mundo do stand up, ela não parece restringir a ligação entre elas a um mero interesse. Apesar de não se expressar muito bem, Susie parece nutrir algum tipo de simpatia por aquela dona de casa que vivia à sombra do marido, tão inferior a ela em talento e personalidade, e de um maneira um tanto torta vai estreitando a relação de confiança com a moça judia. Juntas, elas formam um duo destoante — era difícil, naquela época, uma mulher se destacar no ramo da comédia; normalmente, elas tinham que inventar uma persona para ser cômica nos palcos, ao invés de poderem ser elas mesmas ao improvisar uma sacada.

Nesse sentido, a ideia de Amy Sherman-Palladino de criar uma história baseada em uma mulher tentando se destacar em um ramo tão centrado em homens, especialmente em uma época difícil para elas se sobressaírem na sociedade de um modo geral, foi bastante inteligente. Na vida real, temos nomes como o de Joan Rivers para reverenciar, mas são os comediantes homens que continuam em destaque no quadro geral, e se precisarmos citar comediantes mulheres contemporâneas, os nomes não nos vêm com tanta facilidade (agora, homens? Jerry Seinfeld está aí, por exemplo).

Talvez por isso que, ainda hoje — principalmente hoje —, sintamos a necessidade de fazer uma menção honrosa às produções criadas, dirigidas, produzidas, protagonizadas por mulheres, quaisquer que sejam. Porém, em outra instância, precisamos ser realistas, e ao falar dos defeitos de The Marvelous Mrs. Maisel reconhecemos logo de cara que a série de Amy Sherman-Palladino continua pecando na falta de diversidade. Rachel Brosnaham, Lauren Graham e Sutton Foster, como protagonistas dos títulos de destaque, parecem ter saído da mesma forma, não só pelos maneirismos, como pela aparência. Além disso, o elenco em massa está de acordo com os padrões sociais impostos, ou seja, os personagens não promovem qualquer tipo de inclusão. O roteiro do primeiro episódio de The Marvelous Mrs. Maisel consegue, com sucesso, fazer uma “piada” gordofóbica antes da marca de 1m30s (o que deve ser algum tipo de recorde) e parte do primeiro stand up de Midge é sustentado pela ex-esposa desprezando a amante, e não o marido com quem ela, de fato, fizera promessas de amor e fidelidade no altar.

Quando falamos de censura na comédia, o problema, atualmente, não é tanto a obscenidade da linguagem ou do conteúdo das piadas, quanto é o preconceito que essas piadas veiculam em pleno século XXI, onde as lutas para humanizar e reconhecer os direitos das minorias estão mais em voga do que nunca e a influência da cultura pop acaba sendo monitorada de perto em busca de qualquer tipo de retrocesso. Podemos não ter controle sobre como os criadores ou as emissoras ditam o direcionamento de suas séries, mas temos controle sobre a audiência que daremos e o cuidado com a qual nos referimos a ela. The Marvelous Mrs. Maisel tem sua importância no quadro por continuar colocando em evidência mulheres que são donas de suas próprias narrativas (ou estão a caminho de), mas também tem essa ressalva de se tratar de uma representatividade limitada dentro do seu desenrolar orgânico.

The Marvelous Mrs. Maisel, no mínimo, vale a chance. Não seria certo afirmar que a série é um must entre as novas estreias do outono americano, porque a recepção certamente variará de acordo com o gosto do freguês. Aqueles que gostam dos diálogos rápidos, das referências da cultura pop (mais clássicas, devido à época), das personagens femininas marcantes, e da trilha sonora distintiva e moderna das séries de Amy, certamente vão encontrar prazer assistindo Midge tomar seus primeiros passos na comédia e na vida com suas saias rodadas e seus casacos impecáveis. A primeira temporada consiste no princípio da trajetória e não conta com reviravoltas no roteiro; o desenvolvimento da série, aparentemente, vai acontecer de forma gradual e talvez eventos mais empolgantes estejam reservados para a segunda temporada, já confirmada. Mas, em se tratando de mais uma série centrada em personagens, é sabido que a espera, às vezes, compensa.

4 comentários

  1. Eu gostei muito da série, e é claramente uma série da Amy Sherman-Palladino, com uma história crua mascarada de doce e mágica. Eu tenho gostado muito da trajetória da Midge e a forma que o lugar da mulher na época tem sido mostrado, especialmente de mulheres ricas que pertenciam a círculos sociais restritos. Eu vejo a trajetória da protagonista inversa a da Lorelai, porque aqui vemos uma mulher que era felizmente sujeita aos valores da sociedade da época, e foi tirada disto sem querer e está buscando se encontrar. The Marvelous Mrs Maisel é a história de uma mulher genial, que estava na sombra de um marido medíocre, e que precisa redescobrir sua genialidade em um mundo que não entende isto. O triste pra mim, é ver que ao mesmo tempo que ASP conseguiu mostrar um humor mais ácido, ela não evoluiu ela mesma como pessoa e narradora no papel de diversidade da série, ela foi tão criticada por isto em Gilmore Girls, e ela chega em 2017 e não muda nada, e mais uma vez conta a história de problemas de gente branca e rica.

  2. Adorei sua critica, me contempla perfeitamente! A série me cativou rapidamente, ainda no primeiro capítulo, assim como Midge. Notei a falta de diversidade e a gordofobia e fiquei fula com isso… Quando vi que era uma série de ASP, pensei, tá explicado!

    Acho significativo que em uma das cenas uma mulher negra tenha sido empurrada, enquanto declamava um poema não muito cativante (por que a única personagem negra com algum destaque é responsável por momentos entendiantes e sem noção? por que uma mulher negra tem que participar de um plot assim?), para dar lugar a voz de uma mulher branca. É muita ingenuidade ou ignorância achar que não há algo de errado numa cena dessas, em escrever uma cena dessas… Sem contar a depreciação da profissão e da inteligência de Penny Pan (com aquela cena idiota do lápis) – qual a necessidade disso?

    Ainda assim, consegui gostar da série e que bom que vai ter mais uma temporada!

      1. mas é justamente por você se sentir incomodada com essas cenas que a série funciona, ou você acha que uma mulher negra teria mais vez e chances do que uma branca naquela época? Pra Sra. Maisel foi difícil, imagina pra uma mulher negra….Ou você também acha que se hoje é difícil abordar diversidade, imagina naquele tempo? Vamos nos situar na época…Nem todas as mulheres da época eram altivas, desobedientes, sabiam exatamente o que estava acontecendo ao ser redor. Quando vc se situa no tempo e espaço da série, vc entende mais a crítica social. Assim como existem mulheres como Maisel, existem mulheres como a Penn e não há nada de errado em abordar isso, e ainda mais em série de comédia. Em suma, o mundo não é e nunca foi perfeito, e problematizar isso em Maravilhosa Senhora Maisel é perder tempo.

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