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Crítica: Okja e aquilo que preferimos não ver

Quando eu era criança, não suportava que galinhas prestes a virar uma refeição fossem trazidas para casa ainda com a cabeça. Olhar nos olhos da galinha era a comprovação incontestável de que a carne que eu consumia não surgia magicamente no supermercado, não era produzida em uma máquina, mas antes fora um animal com um coração pulsando. Embora essa experiência não tenha servido para me tornar vegetariana, ou muito menos vegana, vejo nela uma forte semelhança com a polêmica envolvendo o abate de um cordeiro em um programa na televisão — o horror e o desgosto, afinal, também vieram de dezenas de pessoas que consomem carne. Comprar um pedaço de carne no mercado ou no açougue significa se ver diante de um animal com todas as suas características cuidadosamente removidas, de cortes feitos meticulosamente por alguém experiente. Amorfa e bem embalada em plástico filme, a carne moída que vira meu hambúrguer em nada lembra as vacas de olhar moroso que eu costumava ver todas as manhãs da janela do ônibus. É claro que sei de onde ela veio. Mas posso escolher não pensar nisso, se eu não quiser.

É numa mistura de sátira ácida e drama comovente que a co-produção coreana e americana Okja se dedica a fazer um comentário contundente sobre a indústria da carne e aquilo que nossas bandejas de isopor e embalagens plásticas nos privam de ver — para o nosso conforto, claro, mas também para que milhões de dólares continuem circulando e fazendo a indústria girar, e algumas pessoas enriquecerem muito. O longa do sul-coreano Bong Joon Ho começa em 2007 com Tilda Swinton, no papel da CEO de uma empresa do ramo, anunciando seus revolucionários superporcos, que, ela explica, foram encontrados no Chile e importados para alimentar milhões de pessoas que passam fome diariamente, inclusive na superpotência que é os Estados Unidos. A fala de Lucy Mirando cita a erradicação da fome, sustentabilidade, reprodução e alimentação natural, fala no passado de exploração da própria empresa (obviamente deixado para trás), tudo muito afinado com um discurso atual que parece querer fazer o consumidor esquecer que o objetivo de uma corporação também é o lucro. O anúncio de Mirando também serve para propor um “desafio”, amparada pelo veterinário-celebridade Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal), que fica aos cuidados da parte biológica da coisa: que vinte e seis fazendeiros ao redor do mundo criem um de seus superporcos durante dez anos, comprovando a grande aposta que eles representavam.

Okja

Logo depois do inflamado discurso de Mirando somos trazidos para o presente ano de 2017 e, nas palavras do próprio filme — e não por acaso —, para “longe de Nova York”. Nas montanhas no interior da Coreia do Sul, a jovem Mija (An Seo Hyun) e seu avô (Byun Hee-bong) criam um daqueles superporcos (que, embora muito bem feitos, mais parecem hipopótamos de orelhas longas e olhos mais expressivos) — a Okja que dá nome ao filme. É em meio ao verde das montanhas que conhecemos Okja e o apego mútuo que existe entre porca e humana. Okja, por vezes, lembra um cachorrinho, embora saibamos por que motivo ela existe e qual é sua função no mundo, que passa longe de ser o mesmo de um animal de estimação. E, no entanto, somos forçados a refletir: qual é a diferença entre nossos animais de estimação e aqueles que vão para o abatedouro e para nossas mesas?

Para Mija, não existe nenhuma. Sua ligação com o animal a leva a pedir ao avô que compre Okja de Mirando. A grande corporação, no entanto, pouco interessa qualquer proposta de pequenos fazendeiros diante do grande show midiático que vem preparando há uma década para apresentar seus superporcos ao mundo (e principalmente dos muitos dólares que acompanhariam a novela toda). De modo que Okja cumpre seu destino e é levada para muito longe dali. Mija, no entanto, é uma menina determinada e cheia de carinho pelo animal que criou como seu e, contrariando o avô, sai pelo mundo para ir atrás dela, deixando a proteção do lar para trás sem pensar duas vezes. É aí que o filme também adiciona a ação-e-aventura na mistura de gêneros que faz. Na companhia de um grupo de ativistas em prol da libertação dos animais liderado por Jay (Paul Dano) — mas nem sempre auxiliada por eles, que têm os próprios objetivos —, Mija faz todo o possível, dentro da própria ingenuidade, para trazer Okja de volta para as montanhas.

Nessa mistura de gêneros, Okja é mais bem sucedido em alguns níveis do que em outros. O tom do filme ao retratar Okja e Mija inseridas no interior da Coreia e nas grandes metrópoles é completamente diferente, como seria de se esperar, e a paz e o caos de cada um desses cenários são construídos e se sucedem com muita naturalidade. O tom também é diferente no que tange à caracterização de Mija e do restante dos personagens; Mija transmite muita sinceridade e coração, enquanto os personagens ocidentais são extremamente caricaturais — tudo parte da sátira proposta. Muito embora entenda o uso do muito antigo e muito difundido recurso da sátira como forma de crítica, às vezes ele funciona melhor, outras nem tanto. Lucy Mirando é uma exagerada versão dos CEO-celebridades, com sua presença de palco estudada e sua voz preenchida com empolgação calculada, com o cuidado de adicionar pitadas de discurso politicamente correto para agradar aos mais críticos e exigentes. Tudo isso funciona muito bem. Em outros casos, como no de Johnny, o zoólogo-veterinário-personalidade-televisiva, a caricatura é tão excessiva que acaba trabalhando em detrimento do filme, tirando nosso engajamento com o que está acontecendo ali. Absolutamente nenhuma mensagem chega com exceção, talvez, daquela batida sobre as mentiras que as personas cuidadosamente criadas para a grande mídia contam.

Okja

Mas se a sátira e o humor nem sempre são bem sucedidos, o filme se sustenta bem enquanto aventura, até porque ele torna fácil que nos importemos com os destinos tanto de Mija quanto de Okja. Também é por isso que seus momentos genuinamente dramáticos, especialmente ao final do filme, soam genuínos e carregam uma força gigantesca. A construção do amor não só da menina por seu animal, mas também do animal pela menina, é feita de forma muito sincera e cuidadosa; Okja não é necessariamente humanizada, ela segue sendo claramente um animal, mas é um animal que lembra aqueles que tomamos como nossos, aqueles que designamos como os que não são para comer, e sim para nos fazer companhia. Aqueles que causa incômodo saber que viram comida em outros lugares e outras culturas. A sugestão de que o destino de Okja seria o abatedouro, portanto, é profundamente incômoda. Okja, o filme, apesar do tom bem humorado do qual se utiliza na maior parte do tempo, apesar das piadas com excrementos, apesar de suas muitas cores, é muito incômodo. Porque provoca e mexe numa ferida que sabemos que existe, mas que preferimos não ver.

Não vejo o filme como uma obra que esteja necessariamente advogando em favor do vegetarianismo. O tom usado para retratar Mija em relação aos personagens ocidentais é completamente diferente, é muito mais humano do que caricatural, e ela é claramente a heroína, enquanto as pessoas envolvidas na Mirando são seus antagonistas. Mas Mija pesca um peixe que se debate ao ser tirado da água. Seu prato preferido é ensopado de frango. A crítica recai muito mais na indústria da carne e no sistema que a sustenta do que no ato de consumir carne em si. Okja parece advogar primeiramente em favor de um consumo consciente — mas aí obviamente fica o impasse: pode existir consumo ético e consciente dentro do sistema em que vivemos? As questões deixadas em aberto são muitas: estar ciente de que continuamos infligindo tal nível de crueldade em outros animais, de que criamos uma quantidade absurda deles para morrer em condições cruéis, tem alguma serventia? A quem interessa, afinal, que falemos tão pouco sobre as alternativas ao consumo da carne?

Porque o cinema não é redação do Enem, Okja não indica nenhuma resposta óbvia e direta para solução do problema que aponta — e essa também não é sua obrigação. O que ele faz enquanto arte, e faz com sucesso considerável, é provocar e levantar discussões. Chegando diretamente no catálogo da Netflix, o longa é desde o momento de seu lançamento muito mais acessível do que seria nas salas de cinema, e a discussão que propõe tem condições de chegar muito longe. Mesmo com alguns tropeços, Okja cumpre seu papel de agente provocador. As respostas não precisam vir dali; elas cabem a outras pessoas, outros espaços: os nossos.

7 comentários

  1. Oii!
    Eu vi algumas coisas desse filme por aí e até me interessei, mas quando li a sinopse não deu muito certo. Acredito que todos precisam ter um cuidado pra escrever esses pequenos textos e puxar mais a atenção do público.
    Li a sua crítica e ela foi mais que suficiente pra eu me interessar novamente.
    Obrigada!

    1. Oi! Concordo com você, às vezes são escritos de forma tão descuidada que não só não nos puxam para o filme como também nos afastam mesmo. Fico feliz que a crítica tenha servido para te interessar – e que você tenha gostado de filme, se já viu.

    1. Muito obrigada! Pois é, ficamos no impasse. O que a gente faz a partir daí? Eu sinceramente não sei.

  2. Assisti o filme ontem e foi um impacto, assim como todos os outros documentários que já vi nesse sentido porém ainda nao parei de comer carne. Desde que comecei a me interessar por esses assuntos também me perguntei se o problema da carne seria seu consumo em si, ou a industria da carne. É evidente através dos vários estudos que já fizeram que a carne animal é prejudicial, mas penso que de fato o problema maior seja com a produção em larga escala, o mundo sofre de fome todos os dias, pois a carne não é acessível para todos, e os vegetais , sementes que poderiam ser usados pra alimentar pessoas é dado aos bois, que depois viram para nossa mesa cheio de hormônios, sem falar na industria do leite, das peles e da reprodução forçada…E falando em consumo consciente, ter consciência que você está comendo um animal morto não é nada feliz… Acho que foi John Lenon que disse que se os abatedouros tivessem paredes de vidro o mundo seria vegetariano. Quando eu vejo um filme como Okja eu tenho certeza que cada vez mais o mundo está tendo paredes de vidro. Acho que o mundo está pronto pra ser vegetariano. Basta todos nós querermos e ver o quanto a carne carrega tristeza, e dor…

    1. Oi, Ingrid. Concordo com você, e acho que essas discussões são extremamente importantes, seja através de um filme como Okja ou de documentários, reportagens. É muito bom que tenhamos acesso a esse conteúdo, afinal, enquanto nós precismos ver nada, a decisão é muito fácil e simples. Obrigada por compartilhar seu ponto de vista sobre esse impasse por aqui.

  3. Evito ver filmes centrados em animais, mas consegui ver esse e achei muito importante que o tenham feito. É um assunto estranhamente (ou não) pouco abordado pelo cinema de ficção. Até onde sei, existem mais documentários sobre isso, o que acaba limitando a discussão, pois muito menos gente gosta de documentário. Tivemos A Fuga das Galinhas, mas talvez seu impacto tenha sido menor por se dirigir mais a crianças?
    Achei bacana sua visão de que o problema é mais a indústria da carne do que as pessoas comerem carne. É sempre assim – o capitalismo causando estragos. E você reparou que a carne vendida era consumida como petisco, e não como refeição? Quer dizer, quanta carne é PRECISO consumir?
    Acho que o filme indica uma esperança, que passaria pelo capitalismo preocupado com a opinião pública (pois essa preocupação é o que torna a vilã inicial um pouco melhor que a gêmea do final) e dependeria principalmente das gerações futuras (pois no filme temos jovens a favor dos animais x pessoas mais velhas pensando só no lucro). Espero que seja uma esperança digna de ser alimentada. =(

    P.S.: O que achou da cena do acasalamento?

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