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Crítica: A Garota no Trem

Existem muitas formas de chamar a atenção para um filme de suspense, e a forma como A Garota do Trem encontrou foi evidenciar sua premissa no envolvimento da personagem principal em um crime baseado no seu testemunho acidental. Contudo, ao acompanhar a trama na íntegra percebemos que o filme baseado no best-seller de Paula Hawkins vai muito além.

Atenção: este texto contém spoilers

Para introduzir a trama e criar expectativa sobre ela na medida, A Garota no Trem apresenta a história em três pontos de vista de três mulheres retratando de forma subjetiva o contexto de suas vidas. O thriller psicológico parte do ponto de vista de Rachel Watson (Emily Blunt), uma mulher infeliz em sua atual situação, que diariamente viaja de trem até Nova York. Durante o trajeto, ela costuma observar as casas pelas quais passa no caminho, e uma em especial chama a sua atenção. Trata-se da casa à Estrada Beckett, nº 15, onde moram Megan Hipwell (Haley Bennett) e Scott (Luke Evans).

“Meu marido costumava me dizer que eu tenho uma imaginação hiperativa. Mas não posso controlar. Quero dizer, você já esteve num trem e se perguntou sobre as vidas das pessoas que vivem perto dos trilhos? As vidas que você nunca viveu.” (Rachel)

Nessa casa, ela observa por alguns minutos a vida do casal a qual fantasia ser baseada numa relação de amor e cumplicidade — duas coisas que lhe faltam desde que se divorciou há dois anos. Com a eventual revelação dos fatos, descobrimos que Rachel morava a duas casas dali — Estrada Beckett, nº 13 — antes de seu casamento com Tom Watson (Justin Theroux) terminar após ele tê-la traído. Ela guarda com amargura as memórias dessa época, pois culpa a si mesma o fracasso do casamento. Como uma mulher que dava importância àquela fase, Rachel sonhava em se completar tornando-se mãe. No entanto, suas tentativas de conceber um bebê não foram bem-sucedidas e a decepção a fez sucumbir ao álcool e perder a sobriedade das suas ações em vários momentos. Por fim, seu ex-marido a largou para se casar com a amante, Anna (Rebecca Ferguson), e permaneceu morando na casa.  Eis a razão pela qual Rachel deposita tanta fé no casamento de uma mulher a qual ela sequer conhece e apenas tem vislumbres de seu estilo de vida.

No entanto, quando somos introduzidos ao ponto de vista de Megan, percebemos de imediato como as aparências enganam e aqueles momentos não diziam nada sobre sua verdadeira condição. Por mais que a vida de Megan tivesse muitos confortos, ela não era feliz. Seu passado é uma incógnita, e ela não está em sincronia com o marido quanto ao casamento. Semanalmente ela confidencia ao seu terapeuta, Dr. Abdic (Édgar Ramírez), todas as suas infelicidades, e não demora muito para que possamos perceber que por trás de sua leveza física, não há como mensurar o tamanho da bagagem emocional que carrega. Megan passa seus dias em fingimento, e sequer é preciso muita atenção para perceber a apatia em seu semblante.

“Uma vez, um professor me disse que eu era mestre em me reinventar. Eu não tinha certeza do que isso significava naquela época, mas desde que eu me mudei pra cá eu comecei a entender… Eu quero recomeçar a minha vida. Até agora, eu fui: uma adolescente rebelde, amante, garçonete, diretora de galeria, babá e puta. Não necessariamente nessa ordem.” (Megan)

Para se ocupar, Megan trabalha na casa de Anna e Tom como babá da pequena Evie. Embora o trabalho a deixe desconfortável, o casal confiou-lhe o emprego para que ambos pudessem ter tempo para trabalhar e fazer suas atividades. Até que um dia Megan pede demissão por ter conseguido um trabalho em uma galeria e deixa Anna sem apoio para cuidar da casa e das necessidades de Evie — afinal, desde o casamento essa é sua principal função.

“Não tem trabalho mais importante do que criar um filho”. (Anna)

De amante à dona de casa suburbana, Anna não parece se sentir plena em sua função. A dedicação à sua filha é profunda, mas no casamento, a sombra de Rachel sempre a incomodou. Ligações anônimas e mensagens com remetente oculto no celular de Tom fazem-na pensar que a sua família jamais se veria livre da perseguição da inconformada ex de seu marido, por mais que ele dissesse que tais atitudes eram inofensivas.

O filme se põe em movimento quando, um dia, Rachel está no trem e vê Megan na varanda abraçada ao seu terapeuta. E presumindo se tratar de uma traição, ela vê sua fantasia desfeita e se enfurece. Embriagada, a caminho de casa na mesma noite, ela resolve descer naquela vizinhança para confrontar Megan, e há uma cena de luta indistinta. Na manhã seguinte, Rachel acorda em casa, ensanguentada, e sem memórias do que acontecera. Pouco depois, ela descobre que Megan está desaparecida e passa a acreditar que de alguma forma está envolvida nesse caso.

Essa sequência é o engate para o suspense que o filme promete, e no que diz respeito a filmes de suspense, parece seguir a fórmula. No entanto, o que diferencia o filme dos demais são as questões que envolvem as personagens enquanto mulheres em situações desfavoráveis.

Quando o caso do desaparecimento de Megan se torna um caso de homicídio, todos que conhecem Rachel e sabiam que ela estava nas proximidades naquela noite, passam a considerá-la suspeita ou até mesmo responsável pelo crime dado o seu problema com a depressão, alcoolismo e episódios de perseguição. E mesmo nós, como telespectadores, ficamos tentados a declará-la culpada, não fosse nosso conhecimento sobre a dinâmica desse tipo de enredo, e apenas descartamos essa possibilidade quando pensamos que declarar Rachel como culpada seria fácil demais.

Por outro lado, o assassinato de Megan não ter causado impacto é muito significativo. Além da tensão do filme residir, em sua maioria, no comportamento de Rachel, não é uma novidade no mundo cinematográfico — nem no mundo real, diga-se de passagem — a mulher ser a vítima de toda e qualquer atrocidade. Inclusive do julgamento alheio. Considerando as circunstâncias, não deve ser difícil para o público enxergar o crime como forma de punição. Afinal, além de a moça já ter apresentado um caráter duvidoso, sabia-se que ela estava traindo o marido, e ela mesma reconhecia seus defeitos e se via sem valor.

Em sequência, a presença de Rachel nos arredores era cada vez mais frequente com o mistério à tona. Anna se preocupa com a perseguição da ex-mulher de Tom e acredita que ela jamais superou o fim do casamento e, pelo seu estado mental, ela é capaz de colocar sua família em risco. Anna ocupa um lugar que Rachel outrora ambicionou, porém, mesmo assim ela não parece satisfeita. Um grande incômodo no filme é a constante rivalidade e o ataque entre essas três mulheres. Nenhuma está feliz, contudo, por elas não se conhecerem, elas não sabem da infelicidade de cada uma e continuam criando fantasias com o que veem de fora e se afligindo por dentro.

O caso de homicídio, no entanto, serviu como propósito para Rachel: em prol de descobrir o que acontecera naquela noite, ela começa um tratamento para largar o vício e recuperar as memórias. Ao mesmo tempo em que contata o Dr. Abdic para entender sua proximidade com Megan. Ela também passou a fazer visitas regulares a Scott, ainda que baseada em mentiras, e embora tenha visto que o casamento deles tinha problemas, ela ainda não desfez a fantasia que tinha da relação deles.

O desfecho de A Garota do Trem foi, de longe, o trecho mais significativo do filme. Não tanto pela descoberta do assassino, quanto pela desmistificação de tudo que acreditávamos — nós e as próprias personagens.

O evento que faz Rachel recuperar a memória é um breve encontro que tem com a esposa do antigo chefe de Tom. Rachel aproveita a oportunidade para pedir desculpas por um escândalo que acreditava ter feito em uma festa, até que Martha (Lisa Kudrow), confusa, conta sua versão do ocorrido. Então, tudo fica claro na mente dela: durante o tempo em que esteve casada com Tom, ele usou sua vulnerabilidade para manipular as memórias e a culpava das agressões que na verdade haviam sido cometidas por ele. Enquanto passamos quase duas horas pensando que ele era um bom pai e marido, ele era um homem abusivo de péssimo caráter. Ao contrário de Scott, que pensamos ser ciumento e controlador por meio do ponto de vista de Megan, enquanto seu amor por ela era mal demonstrado, porém não violento.

Ao se dar conta da natureza do marido, Rachel percebe que dois mais dois são quatro e faz as conexões. Tom conhecia Megan, e ela estava indo encontrá-lo na hora em que Rachel a abordou. E, ao notar o flagrante, Tom saiu do carro, agrediu Rachel e a abandonou na rua. Quando ele partiu com Megan para a floresta, ela lhe confidenciou que estava grávida. Eles se desentenderam e, uma vez fora de controle, ele acabou matando-a. Quando Rachel vai até a casa dele alertar Anna, mais uma vez tem sua vida ameaçada, porém, em reflexos de autodefesa ela acaba matando-o. O mérito deste final é que não chegamos a descobrir se Tom Watson tinha algum transtorno mental que justificasse seu comportamento — a mensagem que o filme passa é que isso não importa e ele havia de pagar pelo que fez.

A partir desse momento, Rachel, Anna e a memória de Megan passam a se unir, pois percebem que têm mais em comum do que imaginam. As cenas finais apresentam momentos simbólicos que representam que essa intersecção desafortunada em suas vidas as unirá para sempre. E, mais importante, elas foram abatidas por um trauma, mas são capazes de se recuperar. A mudança em Rachel é notável, e após um período de passagem do tempo, ela é vista novamente do trem, sentada do outro lado do corredor passando a mensagem que após a série de ocorridos ela seguiu em frente e visa o futuro.

A construção da narrativa abordando pontos de vista primeira pessoa foi crucial para que a história funcionasse, e A Garota no Trem surtisse o efeito que o diferenciaria dos demais filmes do mesmo gênero. Primeiro, somos manipulados a acreditar que a personagem principal é louca com seu comportamento autodestrutivo e perseguidor, até sermos apresentados a uma porção de pistas que desvie a suspeita dela no crime, e partirmos para explorar outras resoluções. E qual é a nossa surpresa ao descobrir que o responsável na verdade era o homem que o tempo todo parecia ter sido a vítima, quando era justamente o contrário?

Para quem não teve contato nenhum com a trama antes da experiência de assistir ao filme, A Garota no Trem causa um impacto inesperado. O filme serve como espelho da nossa sociedade quando representa como as mulheres são sabotadas pelo que dizem que elas são, e a sensação libertadora que as transforma quando elas se livram dessas amarras. Rachel Watson assume o papel de vítima e heroína ao mesmo tempo, demonstrando sua humanidade e sendo a pessoa que indica o que há nas entrelinhas de uma história que a princípio parece ser mais um caso de “quem assassinou quem”. Fiquemos atentos.

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2 comentários

  1. O que me incomoda nesse filme é que no livro a protagonista é uma mulher gorda, na casa dos 40-50 anos e no filme saiu como a bela e magra Emily Blunt.

    Quero só ver quando eles adaptarem A Rainha de Tearling, que é gorda e negra e escalaram para o papel a Emma Watson.

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