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Crítica: Desobediência

Adaptações para o cinema são fascinantes. Houve uma época em que eu apontava os defeitos de obras adaptadas da literatura em uma tentativa de desmerecer o trabalho que destoava daquilo que havia lido. Hoje, no entanto, consigo reconhecer que existem inúmeras variáveis sobre elas. É preciso pensar sobre a mensagem que se quer transmitir com a obra cinematográfica e as diferenças entre a literatura e o cinema, porque são essas algumas das questões que norteiam uma adaptação cinematográfica.

É o caso de Desobediência, filme dirigido pelo aclamado Sebastián Lelio e protagonizado por Rachel McAdams e Rachel Weisz. A mensagem do livro é muito diferente da que o filme coloca, mas isso não é um problema. Como Thayrine Gualberto escreve em sua crítica sobre o livro de Naomi Alderman, no qual o filme é inspirado, trata-se de uma questão de escolha. “Tudo o que temos são nossas escolhas”, diz o livro, e Lelio fez a sua. E ela não é melhor ou pior, apenas diferente.

Atenção: este texto contém spoilers!

Os efeitos da mudança de perspectiva da adaptação cinematográfica

Quando as imagens de Desobediência começaram a circular pelas redes sociais, eu não imaginava que o filme se passasse em uma comunidade judaica ortodoxa que não recebe bem o amor entre duas mulheres. Quando se é bissexual ou lésbica, um filme mainstream sobre o relacionamento entre mulheres é a primeira mensagem que fica gravada na mente. É difícil que nossas histórias alcancem o mainstream sem que sejam estereotipadas, sexualizadas ou vítimas de male gaze. Desobediência chama a atenção por não usar nenhum desses recursos — um dos aspectos de que mais gostei no filme, aliás.

No livro, a comunidade judaica ortodoxa é um quarto personagem, sempre espreitando os personagens, julgando suas ações. Já no filme, essa lógica é subvertida. A cultura judaica como um fator extremamente importante na construção da identidade dos três personagens principais, Esti (Rachel McAdams), Dovid (Alessandro Nivola) e Ronit (Rachel Weisz), parece tornar-se um acessório não tão importante dentro do filme. O espectador deve prestar atenção somente ao amor proibido entre as mulheres.

A consequência do apagamento da cultura judaica em Desobediência é a universalização do amor proibido entre mulheres. É como se aquela situação pudesse acontecer em outras esferas. Se as peças do jogo forem trocadas, ainda é possível ter como resultado da equação o preconceito e o desprezo. “O amor é um ato de desafio”, diz o cartaz do cinema — e é verdade. Em um mundo que já nos avalia de forma diferente por causa de nosso gênero, amar outra mulher é um ato revolucionário. Dessa forma, a comunidade que tanto repudia Esti e Ronit poderia ser seu vizinho. Poderia ser algum parente. Acredito que isso torne a experiência muito mais forte, porque é impossível não se identificar com o que as duas mulheres passam. Todos os dias, enfrentamos medos e demônios — reais ou imaginários. Estar no armário, como Esti, é um inferno, assim como estar fora dele também, como no caso de Ronit, embora não esteja explícito no filme que a personagem é bissexual.

Os demônios de Esti dizem respeito ao fato de ter ficado no mesmo lugar, na sua comunidade, e enfrentado o destino que lhe cabia enquanto mulher. Ela casou-se com o primo da mulher que amava na tentativa, como ela mesmo diz, de ficar mais perto dela de alguma forma. Lelio tem muita sensibilidade para delinear com suas imagens a tristeza que vem de dentro dessa personagem. Esti, como várias mulheres judias, usa peruca. Trata-se de um costume que remonta do ritual Sotah, cerimônia descrita na Bíblia que testa a fidelidade de uma mulher acusada de adultério:

“Depois do sacerdote ter feito a mulher ficar de pé diante do Senhor, o sacerdote descobrirá a cabeça da mulher e desmanchará suas tranças e colocará em suas mãos a oferta de lembrança, que é uma oferta de ciúmes. E nas mãos do sacerdote deve haver a água da amargura que induz o ritual.”

Pelas lentes de Lelio, a peruca ganha um significado muito forte da opressão sofrida por Esti. Somente nos momentos em que ela retira o acessório é que ela pode ser quem realmente é. Geralmente, essas ocasiões se dão na solidão. O privado desempenha o papel do lugar seguro, onde Esti pode livrar-se momentaneamente de seus fardos. Toda vez que a vemos de peruca, ela está no espaço público, seja fazendo compras ou lecionando. Estar com esse acessório na cabeça, onde reside sua mente, é um lembrete constante de sua infidelidade ao Senhor, a si mesma e à comunidade onde vive.

O personagem Dovid também sofre uma ressignificação na adaptação de Sebastián. Aqui ele se torna somente um empecilho ao amor entre as duas personagens. Diferentemente do livro, Dovid não aparenta estar lutando batalhas internas. Ele parece cego em sua fé e nas obrigações que deve cumprir. O único momento em que o vemos hesitar é quando, após saber que Esti e Ronit tiveram um relacionamento, ele declina o pedido da sua comunidade para ser rabino. Dovid é universalizado para que possa cumprir o papel do personagem que avalia seus valores e percebe que o preconceito não leva a lugar algum. Em um belo momento do filme, os três personagens se abraçam após um discurso inflamado na sinagoga, onde Dovid se vale de metáforas para dizer que deixa as duas personagens escolherem seu destino.

A relação paterna em Desobediência: uma experiência pessoal

Não foi apenas o amor proibido entre duas mulheres e todos os seus efeitos que me impactaram em Desobediência. Tive uma experiência muito pessoal com o filme, pois a relação entre pai e filha retratada por ele parecia, em diversos momentos, com a que tive com meu próprio pai.

No filme, Ronit abandona a comunidade em que vivia, com um pai autoritário e que não lhe dava espaço para questionar as regras, para viver em Nova York. Ela passou anos sem falar com ele até o dia em que uma ligação a avisa que o pai havia falecido. A personagem, então, precisa enfrentar o desprezo daqueles que não aceitam o abandono. Afinal como uma filha pode abandonar um pai? Não devemos obediência aos nossos pais? Ronit é soterrada de julgamentos o tempo inteiro, de estranhos lhe dizendo que ela deveria ter ficado ali, mesmo sentindo-se oprimida pelo pai.

Como Ronit, também fiz o movimento de cortar relações com meu pai, e essa é uma das maiores cruzes que carrego. Ver aquilo retratado no filme, com tanta veracidade, me fez reviver alguns sentimentos que se manifestam nas noites em que o peso da escolha de não ter contato com ele se abatem sobre meus ombros. No momento em que escrevo esse texto, lembro de quando chorei no ombro da minha mãe, sentindo-me miserável por uma escolha que me parece acertada, mas por que precisa doer tanto? Ronit também se sentia assim. Ela sabia que o pai não a respeitava, então como ficar? Por que tinham de lhe lembrar constantemente que ela não estava ali? Ela sabia, todos os dias, como era não estar lá. Eu sei como é não estar todos os dias, também.

Ser uma pária dentro da própria família é um fardo por vezes pesado demais. Em Desobediência, há uma cena na mesa de jantar. Nela, Ronit está na casa de seu tio, junto de todos os parentes, e em um determinado momento a conversa acaba virando um gatilho para lhe lembrar o quanto ela não é bem-vinda ali.

A verdade que Ronit passou foi uma benção e um tormento ao mesmo tempo. Se de um lado, as lembranças machucam, de outro, você precisa lembrar que é uma sobrevivente e estar longe não significa não lidar com as consequências. Trata-se de um equilíbrio delicado. Rav, o pai de Ronit, aparece apenas na primeira cena de Desobediência. No entanto, sua presença atravessa toda a trama; suas ações moldam quem ela é, e suas escolhas atravessam sua vida de uma maneira muito particular. No fim do dia, Ronit é a única que sabe os motivos pelos quais foi embora: para ela, tudo era tóxico demais. E praticar a desobediência, ou seja, ir contra o fato de honrar pai e mãe, é uma revolução. E há de se pagar um preço por ela. Todos os dias.

Uma cena de sexo intensa e sem male gaze

Muito se especulou sobre como seria a cena de sexo entre Esti e Ronit, se haveria ou não o tão falado male gaze, muito bem definido por Anna Vitória Rocha neste artigo:

“O cinema (quando digo cinema, falo de narrativas visuais de modo geral) é um sistema de representações, e o male gaze é modo-de-fazer que coloca na tela a representação do olhar do homem sobre seu objeto de desejo, que é a mulher. A mulher está sempre sendo olhada e representa a fantasia masculina de algo que existe, antes de qualquer coisa, como um símbolo de prazer.”

O caso mais famoso de male gaze em filmes lésbicos é o filme Azul é a Cor Mais Quente, de Abdellatif Kechiche. O filme inteiro é um male gaze por si só, sempre focando a câmera na boca da personagem principal, Adèle (Adèle Exarchopoulos), erotizando tudo o que ela faz. Além disso, as atrizes e protagonistas, Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos, deram inúmeras declarações contando sobre os abusos do diretor no momento de rodar a cena de sexo entre elas, o auge do male gaze no filme:

“Ficamos diante de Kechiche e da equipe técnica repetindo incessantemente cenas de sexo, sete dias por semana, dez horas por dia. Cheguei a ficar cansada de tanto fazer sexo.” — declarou Léa Seydoux.

Por todo esse histórico de visão heteronormativa de relacionamentos entre mulheres no cinema, é claro que ficaríamos com o pé atrás em relação a como Lelio, um homem heterossexual, iria retratar um dos momentos mais eróticos e poderosos de Desobediência. A boa notícia é que a cena entrega amor e sensualidade sem apelar para a nudez, usando ângulos diferenciados, filmando o rosto das personagens enquanto sentem prazer, algo que Sebastián trabalhou diretamente com as atrizes, apresentando o storyboard da cena a elas:

“Tive uma ideia, ao invés de mostrar a pele, fomos em busca de atos bastante específicos que raramente vemos na tela ou nesses tipos de filme. É por isso que essa cena tem uma identidade forte muito peculiar.”

Além do erotismo, a cena de sexo representa o momento de libertação para Esti, tão reprimida pela religião e comunidade. Em uma das cenas em que transa com o marido, nós a vemos de peruca. No entanto, quando está com Ronit, uma das primeiras coisas que caem por terra é a peruca. É uma ocasião única de quebrar as correntes, à maneira dela. Desobediência insere a cena de sexo não para agradar o espectador hétero, mas pela coerência que ela desempenha dentro da narrativa.

Outra informação interessante é que Rachel Weisz ajudou a editar a cena. Como produtora do filme, a atriz teve liberdade para fazê-lo. A ideia inicial era que Desobediência mostrasse os orgasmos de ambas as personagens, mas Lelio decidiu deixar apenas o orgasmo de Esti, para se concentrar exclusivamente em Esti, no fato de que aquele era seu momento de empoderamento. Rachel McAdams declarou que nunca havia sentido a mesma energia com seus parceiros de cena masculinos durante uma cena de sexo como com Rachel Weisz. Segundo as atrizes, durante a entrevista para a Entertainment Weekly, isso se deve à camaradagem entre elas. Ainda ressaltam que estavam muito confortáveis, e é possível sentir isso.

Como lésbica, posso dizer que me senti muito contente por ver um homem heterossexual como Lelio respeitando nosso corpo e os relacionamentos entre mulheres. É sempre uma surpresa quando um homem não estraga uma história, mesmo se tratando de Sebastián, um diretor que, desde de o primeiro filme que vi, conseguiu me cativar com seu jeito sensível de contar histórias. Antes de Uma Mulher Fantástica, vencedor do Melhor Oscar de Filme Estrangeiro deste ano, ele rodou Gloria. Nele, o diretor retrata os amores e desamores da personagem homônima, uma mulher mais velha e divorciada. Nesse quesito, Gloria dá uma aula de representatividade de mulheres mais velhas, sem cair em clichês ou sexualizações.

Filmes como Desobediência restauram a fé em mundo que não retrate os relacionamentos amorosos entre mulheres como mero fetiche de homens heterossexuais. Ele mostra que é possível ser homem e dirigir um filme respeitando suas atrizes e a vontade delas. A não fidelidade ao livro não retira o valor de Desobediência. No fim do dia, são apenas escolhas. E Lelio consegue criar um universo muito interessante a partir daquele originalmente concebido por Naomi Alderman.


*A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

2 comentários

  1. Amei sua análise. Perfeita! Pena que um filme tão belo e sensível, não alcançou bilheteria para pagar seus custos. Parece que Rachel Weisz comprou os direitos de adaptação do livro de Naomi Alderman e fez questão de escolher Sebastián Lélio como diretor, aliás, ela é produtora do filme. Não é sempre que vemos duas atrizes lindas e femininas, com tanta química. As atrizes estão reais em seus papéis, sentimos a angústia e o amor delas. Acho que os filmes gays masculinos têm mais público e prêmios, A Garota dinamarquesa, Com amor Simon, Moonligt – Sob a luz do Luar, Me Chame pelo seu Nome, Uma Mulher Extraordinária. Enquanto que um filme tão belo como Carol, passou dez anos em elaboração, não ganhou Oscar, perdendo para ” O quarto de Jack” e ” Moonlight- sob a luz do luar” ótimo filme sobre um negro gay, ganhou o Oscar. Chego a conclusão que há muito mais dificuldade em se fazer filmes com temática lésbica, triste constatar.
    Filme antigo para assistir, uma dica, não tão antigo, o filme biográfico francês com Isabelle Huppert e Miou-Miou, uma homenagem da diretora para sua mãe, temática lésbica, “Entre Nous” = Coup de Froud ; o inesquecível ” Em algum Lugar do Passado” ou ” A Filha de Ryan” ou ” Berlin Affair.Livro sobre homossexualidade feminina, talvez o primeiro clássico, ” O Poço da Solidão”. E na década militar , tivemos no Brasil uma escritora especializada em drama lésbicos, Cassandra Rios.

  2. Que alívio encontrar um texto escrito por mulher (melhor ainda, por uma mulher LGBT)! Foi de longe a melhor análise que li até agora. Não conhecia o site, feliz de ter chegado aqui! 🙂

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