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Crítica: A Chegada

À primeira vista, A Chegada, filme mais recente do diretor Dennis Villeneuve, pode se parecer com mais um dos inúmeros blockbusters de ficção científica que são lançados ano sim, outro também. Está tudo lá, conforme manda o figurino: os alienígenas que chegam inesperadamente na Terra, as autoridades que tentam manter o controle da situação e estabelecer algum tipo de comunicação com os invasores; a população desesperada, instaurando pânico nas ruas do mundo todo. Contudo, é por trás dessa premissa aparentemente banal que se esconde a verdadeira história que transforma A Chegada senão no melhor filme do ano passado, ao menos em um dos mais especiais.

Atenção: este texto contém spoilers!

Baseado no conto de Ted ChiangStory of Your Life (publicado no Brasil pela Editora Intrínseca no livro História da Sua Vida e Outros Contos), o filme começa com uma espécie de prólogo, em uma pequena viagem pelas memórias da linguista Louise Banks (Amy Adams) vividas ao lado de sua filha, Hannah. São momentos que incluem diferentes fases da vida e do relacionamento das duas de forma cronológica, do nascimento de Hannah até o diagnóstico da doença que levaria ao fim de sua vida, ainda na adolescência; e que são indispensáveis na trajetória da protagonista. Assim, quando encontramos Louise novamente, é difícil não se deixar levar por aquilo que assistimos antes.

É essa improvável protagonista, uma heroína de humanas no universo masculinizado e exato da ficção científica, que nos acompanhará ao longo da história, e é através de seu olhar peculiar que vemos o desenrolar dos fatos. Louise Banks é doutora em linguística e colaborara com as forças militares americanas servindo como tradutora de farsi. Sua excelência no ramo serve de credencial para que ela seja procurada novamente, dessa vez para traduzir a estranha linguagem dos aliens que chegaram à Terra em 12 naves espalhadas em lugares diferentes do globo. Ao vencer a postura defensiva inicial do exército, representado na figura de Coronel Weber (Forest Whitacker), Louise consegue permissão para ir até Montana, onde a “nave” – um enorme monolito côncavo que flutua sobre a superfície, uma das várias referências que o filme faz a 2001 – Uma Odisseia no Espaço – se instalou em solo americano. Ao lado dela está o físico teórico Ian Donelly (Jeremy Renner), também recrutado na missão de estabelecer contato com as criaturas e descobrir quem elas são, de onde elas vêm e, o mais importante, o que elas querem.

O primeiro encontro dos dois com os heptápodes – nome dado aos extraterrestres por conta de suas sete pernas e ausência de cabeça – é uma das cenas mais impressionantes do filme, graças à direção de Dennis Villeneuve que equilibra as atuações de Adams e Renner ao espetacular trabalho de Bradford Young na fotografia do filme, unida à trilha sonora de Jóhan Jóhannsson, criando uma atmosfera que provoca no espectador a mistura exata de medo e fascínio que uma experiência como essa deve proporcionar. Dentro da nave, a gravidade é radicalmente alterada, mandando para o ralo toda a física que Ian acreditava conhecer, da mesma forma que a primeira troca estabelecida entre Louise e os heptápodes (posteriormente batizados de Abbott e Costello, um dos detalhes mais deliciosos do roteiro) – a palavra HUMAN escrita em um cartaz contra um círculo desenhado como uma mancha de café no ar a guisa de resposta – mexe com a compreensão da linguista acerca das estruturas de comunicação e, consequentemente, de pensamento e entendimento do mundo.

É um processo lento e delicado que, ao contrário do que se imagina num primeiro momento, se distancia radicalmente de um blockbuster tradicional, com tiro, porrada e bomba para todos os lados. Embora o suspense e o mistério sejam partes fundamentais da narrativa, a tensão que cerca a história se estabelece muito mais em torno da pressão pela busca de resultados do que qualquer outra coisa. É uma corrida contra o tempo onde cruzar a linha de chegada significa não apenas estabelecer a comunicação entre duas raças tão distintas, mas impedir o avanço da abordagem hostil por parte de outras nações, o que pode desencadear um conflito real e colocar tudo a perder.

Toda a trama política e militar que surge a partir daí é parte da adaptação que o roteirista Eric Heisserer faz do conto original de Ted Chiang, um trabalho complicado quando se tem noção do quão pouco visual é a história que inspira o filme. O mesmo acontece com o argumento que dá sentido à trama, que Chiang explica de forma elegante usando conceitos de física e linguística que, no entanto, não ajudam muito em uma narrativa audiovisual. Apesar do desafio, o conflito que Heisserer usa como solução parece um tanto bocó diante da sofisticação do cerne da história, principalmente porque ele não hesita em colocar os Estados Unidos – um país que, historicamente, sempre esteve envolvido em conflitos contra grupos minoritários, força central em tantos horrores de guerra – como a parte moderada da situação em contraponto à China, que na história age de forma abertamente hostil contra os invasores após uma falha de comunicação (ah, a ironia!), numa imagem bastante estereotipada do país.

Essa postura americana apaziguadora se deve muito ao fato do país ter Louise Banks como figura central no desenrolar das ações. Não apenas porque é ela a responsável por decifrar a linguagem dos heptápodes e salvar o dia, mas porque Louise consegue tudo isso porque é mulher. Louise, como descobrimos nas primeiras cenas do filme, é mãe. Sua inteligência a ajuda a entender escrita semasiográfica [forma de linguagem que não tem correspondência fonética, como a matemática] dos extraterrestres, mas a conexão só acontece pela forma sensível e delicada que ela aborda os visitantes desconhecidos. E se a própria ficção científica costuma reforçar discursos problemáticos sobre aquilo que é diferente, de fora, pouco comum, a reação do governo vai de encontro à noção que estabelece o outro como uma ameaça, algo a ser temido. A relação que Louise constrói com os heptápodes, embora comece de forma tímida e receosa, logo se transforma em uma espécie de parceria, onde tanto ela quanto as próprias criaturas vão percorrendo juntas um caminho de aprendizado e esclarecimento.

A forma completamente nova de lidar com a situação diz muito mais sobre Louise do que qualquer outra coisa: sua força e complexidade enquanto personagem está em traços historicamente associados às mulheres como papéis femininos até pouco tempo inquestionáveis – e inferiores. É Louise quem tem a iniciativa de abandonar o traje de proteção ao se encontrar com os heptápodes, se arriscando mais do que qualquer um ali até o momento, e é quando ela abandona essa barreira que uma conexão (e não um simples contato) começa a ser estabelecido. Ela imerge completamente no ambiente alienígena, mesmo que isso coloque sua vida em risco, e quebra todas as regras, porque essa era a única saída para compreender o que aqueles seres desejavam no planeta Terra e evitar que a situação saísse completamente do controle. Se a sensibilidade feminina é constantemente representada de forma tosca na ficção, principalmente em gêneros dominados por homens, como a ação, a aventura e, sim, a ficção científica, e a emoção das mulheres é apresentada como a fraqueza que as afasta do campo de ação, A Chegada faz justamente o contrário: ainda que reforce um estereótipo, são esses traços historicamente inferiorizados que salvam o dia, mostrando que não é preciso chutar bundas de forma literal para ser uma heroína.

comunicação é outra personagem que aparece na história de diversas formas, sendo a solução de todos os conflitos do filme enquanto sua ausência é a causa destes. O teórico da comunicação Luiz Martino analisa o significado de comunicação a partir do resgate do seu termo de origem, communicatio, direto do latim. A palavra era usada nos mosteiros habitados por monges de orientação cenobita para designar o ritual de comer em companhia de outros indivíduos. Uma vez que a ordem antiga pregava que o isolamento era essencial para conhecer a Deus, o contato entre os sujeitos tornava-se uma novidade, daí a necessidade de um termo especial. Vale dizer que a ideia central de communicatio se apoia na noção de que algo foi tirado do isolamento. 

Essa ideia é especialmente cara quando pensamos em A Chegada, que já começa quebrando a ideia de que estamos sozinhos no universo. Ao longo do filme, o isolamento continua a ser enfrentado: não estamos sozinhos no universo e nem na Terra que já conhecemos, precisando conciliar diferentes povos, culturas e vontades, e é a comunicação que faz isso, tendo em Louise sua principal agente. Quando conhecemos o final do filme, a visão de Louise segurando a placa escrito HUMAN no primeiro contato com os heptápodes ganha uma nova perspectiva: ela se identifica como humana porque é esse adjetivo que gostamos de usar não apenas para nos definir enquanto espécie, mas para nos separar de barbárie, da irracionalidade, e do isolamento.

A grande virada do filme, aliás, só acontece porque Louise consegue ultrapassar as barreiras da língua e desvenda o quebra-cabeças que, até então, ninguém mais tinha sido capaz de decifrar. É o último – e maior – ato de quebra do isolamento, também essencialmente humano, que faz com que toda a trajetória da protagonista ganhe um novo significado. Ao dominar a linguagem dos heptápodes, ela adquire uma nova percepção da realidade em que passado, presente e futuro se desenrolam não mais de forma linear, mas em círculo, transformando-a numa extraordinária viajante no tempo dentro de sua própria consciência. Suas memórias, que invadem o filme como eventos passados que voltam à sua mente o tempo todo, se suspendem no ar para dar lugar a uma configuração onde as noções de tempo como as conhecemos já não existem mais. É incrível descobrir que a narrativa esteve brincando com seus próprios vícios, a ideia de um início, um meio e um fim lineares.

 

A personagem usa desse novo conhecimento para mudar o curso da História e salvar o mundo, mas não para alterar sua história e a tragédia que a transforma. A partir desse momento, A Chegada deixa de ser um filme sobre uma doutora em linguística tentando se comunicar com alienígenas para se transformar na história de uma mulher e, consequentemente, sobre todos nós. Louise descobre o fim, a morte, um spoiler ao qual todos temos acesso, ainda que alheios aos seus detalhes. A certeza e inevitabilidade do fim é um dos grandes – senão o maior – drama humano. Na história de Louise, inícios e fins deixam de existir para dar lugar aos meios, e é por isso que, logo no início do filme, ela diz que não sabe mais se acredita neles. A História da Nossa Vida, título do conto original não por coincidência, não é definida pelo fim, e sim pela jornada e pela conexões que estabelecemos ao longo dela. É em nome delas que Louise se despe uma última vez dos trajes de proteção para enfrentar a parte que lhe cabe nessa história, a sua história, desafiando o isolamento no qual nos escondemos por termos medo demais do que pode nos esperar no fim.

Existe um termo na língua dos heptápodes que diz que o fim não existe, mas é parte de um todo indivisível que forma tudo aquilo que somos e vivemos. A Chegada é uma bela forma de tentar traduzi-lo.

Crítica escrita em parceria por Ana Luíza e Anna Vitória.