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Crazy Ex-Girlfriend: os anos de aprendizado de Rebecca Bunch

No sentido figurado, a palavra “jornada” possui o significado de “esforço para superar obstáculos ou dificuldades”. Frases como “jornada para o futuro”, “jornada para a cura”, “jornada para o oeste”, não só significam uma longa caminhada, ou histórias de conquista e colonização, mas também há nelas a conotação de melhora, de evolução e de avanço — não só o avanço físico e imediato, mas principalmente o tipo de avanço que fica para a história, o legado.

Na literatura, temos o conceito da Jornada do Herói, já muito explorado em filmes e livros, como Harry Potter, Senhor dos Anéis, Star Wars, e até o Novo Testamento, além de outras milhares de histórias do repertório popular. A Jornada simboliza a série de acontecimentos pelos quais o protagonista precisa passar — e vencer — para se tornar o herói prometido.

O termo “jornada” utilizado aqui não é leviano nem aleatório, pois é um termo rico em signos e sentidos. Contudo, não é preciso ser um grande herói, cujo futuro foi premeditado anos antes de seu nascimento, para seguir uma jornada — e Rebecca Bunch (Rachel Bloom) quem o diga. Crazy Ex-Girlfriend é uma série criada por Rachel Bloom e Aline Brosh Mckenna cuja quarta e última temporada estreou ainda neste ano. Já foi falado por aqui sobre a série e sua imensa influência de musicais e filmes de comédia romântica, e como os episódios e personagens conseguem repetir os clichês e tropos e, ao mesmo tempo, subvertê-los de uma maneira inovadora e engraçada. Não é uma série qualquer e definitivamente a TV nunca viu algo parecido. Por ser tão rica em referências, tanto de cultura pop quanto de storytelling, Crazy Ex-Girlfriend é um poço quase que infinito de possíveis análises, ainda mais para quem gosta de pensar e estudar sobre narrativas, e foi pensando nisso que a jornada de Rebecca Bunch me pareceu similar a outras jornadas escritas por aí.

Rebecca Bunch

Atenção: esse texto contém spoilers!

Inspirada por um comercial de margarina e pelo encontro aleatório com Josh (Vincent Rodriguez III), seu ex-namorado do acampamento de verão quando tinham 16 anos, Rebecca decide abandonar sua vida de advogada nova-iorquina de muito sucesso e se mudar para West Covina, uma cidade do subúrbio de Los Angeles, a apenas duas horas de distância da praia e onde, por uma coincidência (não planejada, é claro), Josh, por algum acaso, mora. Para tentar esconder o máximo possível suas reais intenções em largar o emprego em Nova York para morar em West Covina, Rebecca conta mentiras e mais mentiras sobre suas intenções, e para esconder as mentiras, ela e sua nova melhor amiga, Paula (Donna Lynne Champlin), começam a tramar esquemas para que Josh largue sua namorada de longa data Valencia (Gabrielle Ruiz) e se apaixone de novo por Rebecca.

Quando os esquemas e mentiras ultrapassam limites, Rebecca decide parar e tentar superar seus sentimentos por Josh. Assim, acaba aceitando sair com Greg (Santino Fontana), que desde sua chegada na cidade estava interessado nela. Mas o relacionamento com Greg não dura muito, pois Rebecca cede e logo retoma sua obsessão por Josh. Não é difícil perceber que o que Rebecca sente por Josh não é exatamente amor. No primeiro episódio, por exemplo, ao chegar em West Covina, a primeira coisa que Rebecca faz em sua nova casa é jogar fora seus remédios psiquiátricos. A busca compulsiva pela tal felicidade que ela relaciona diretamente a West Covina e Josh Chan é mais um sintoma de que algo não está certo do que a jornada de sua vida.

Ao contrário do que Rebecca deseja, sua vida em West Covina não é necessariamente mais feliz que sua vida em Nova York, mas é na costa oeste que ela faz novos amigos e começa a perceber que talvez seus atos tenham consequências e que é preciso arcar com as responsabilidades de suas ações. Na segunda temporada, Rebecca se reaproxima de Valencia, agora solteira e em crise, e as duas se tornam grandes amigas. Heather (Vella Lovell), sua vizinha mais jovem e bem mais maneira, também acaba vendo em Rebecca, em seus momentos mais vulneráveis e malucos, uma pessoa com quem vale a pena se relacionar, assim como Darryl (Peter Gardner), seu chefe. Mesmo ainda longe de ser perfeita, Rebecca encontra uma rede de suporte que a ajuda — junto com sua terapeuta (Michael Hyatt) — a reconhecer seus comportamentos mais destrutivos.

Rebecca Bunch

Na terceira temporada, talvez a melhor da série, Rebecca Bunch chega ao fundo do fundo do poço. Ao longo das temporadas anteriores, Rebecca sempre chegava ao fundo de algum poço e aprendia alguma lição com isso; quando, por exemplo, uma mensagem mandada para a pessoa errada desencadeou uma série de péssimas decisões, ou quando Rebecca beija Nathaniel (Scott Michael Foster) logo depois de Josh pedir sua mão em casamento. De uma forma ou de outra, as pessoas a perdoavam, ou o tempo passava e outros problemas a faziam esquecer dos erros passados. É só na terceira temporada que os atos de Rebecca realmente a afetam de tal maneira que não há volta. É tão intenso que sua história precisa mudar.

Como forma de escapismo ou auto-análise, Rebecca — e outros personagens ao longo das série — imagina situações cotidianas como números musicais, que na maioria das vezes referenciam outros musicais ou grandes sucessos da músicas pop. Esse lado pastiche de Crazy Ex-Girlfriend ameniza as temáticas da série, que em outra situação poderiam ser tratados em dramas, e não comédias — como saúde mental, disfunções, traumas, distúrbios alimentares, entre outros —, e também cria uma maneira particular de contar suas histórias.

Até a tentativa de suicídio no quinto episódio da terceira temporada, as consequências do que Rebecca fazia se misturavam com a fantasia criada ao redor da história e dos números musicais. Não há como cantar depois de morta, então Rebecca precisa não apenas se reinventar — pintar o cabelo, comprar novas roupas e planejar a vingança contra Josh. Ela precisa de tratamento médico, consultas com psiquiatras e voltar para a terapia. É claro que Rebecca continua pensando e processando seus sentimentos através de músicas, mas o foco sai um pouco dela e se distribui entre outros personagens ao seu redor.

Um dos gêneros mais populares da literatura ocidental é o romance de formação, ou, para os mais acadêmicos, o bildungsroman. Bildungsroman é intraduzível como palavra, mas como conceito se convencionou chamar de “romance de formação”, que, segundo o artigo “Para uma interpretação do conceito de Bildungsroman” é “um tipo de romance que se caracteriza pela formação do protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de síntese entre práxis e contemplação”. O mais famoso romance de formação da tradição literária é o livro Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, que em seu título auto-explicativo traz o conceito de romance de formação: anos de aprendizado. Romances de formação, em outras palavras, são aquelas histórias em que o jovem protagonista aprende uma série de coisas até que algo dentro de si enfim se transforma.

No livro O Cânone Mínimo: O Bildungsroman na História da Literatura, a autora Wilma Maas explica:

“Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão de enganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo. Esse equilíbrio é frequentemente descrito de forma reservada e irônica; entretanto ele é, como meta ou ao menos como postulado, parte necessariamente integrante de uma história da formação.”

O equilíbrio mencionado (ou, para retomar a citação anterior, a “síntese entre a práxis e a contemplação”) é o resultado dos aprendizados do protagonista do romance de formação. Na jornada de ensinamentos e lições, a reta final é o equilíbrio entre o que o protagonista sente e faz. Para usar o exemplo da série, na quarta e última temporada de Crazy Ex-Girlfriend, Rebecca Bunch caminha para a harmonia entre sua racionalidade e seus episódios de delírios musicais. Sua racionalidade como manifestação da práxis e seus episódios musicais como manifestação da contemplação.

Rebecca Bunch

A estrutura da primeira parte da quarta temporada, pelo menos até o presente momento, pode ser sintetizada, nas palavras das próprias criadoras, como “Rebecca aprende coisas”. Contudo, apesar de esse ser o momento que Rebecca finalmente consegue perceber como suas ações afetam os outros e a si mesma e está confiante no processo de melhora e tratamento, desde o início da série Rebecca se confronta com situações nada favoráveis a ela e que demandam certa mudança em suas atitudes para conseguir o que deseja. Em outras palavras, Rebecca está, desde quando desiste de seu emprego em Nova York para se tornar uma advogada medíocre em West Covina e ser feliz, em sua jornada de aprendizado, mesmo que só tenha começado a entender as lições recentemente.

Como Crazy Ex-Girlfriend é uma série musical, as músicas não apenas oferecem um alívio cômico como também fazem parte da narrativa e de como a série desenvolve as histórias e seus personagens. É possível entender o que acontece pulando os números musicais, mas para mergulhar no universo da série as canções são essenciais.  Um ponto importante de virada para Rebecca em sua jornada de formação é a música “The End of The Movie”, do quarto episódio da terceira temporada, que, ironicamente, ao contrário da maioria das músicas da história de Rebecca, não é cantada por ela, e sim por Josh Groban.

“The End of The Movie” não só marca a primeira parte do fundo do fundo do poço de Rebecca, como também, de maneira brilhantemente metalinguística, explica como a vida não faz sentido narrativo, mesmo fazendo parte de uma narrativa ficcional.

“Because life is a gradual series of revelations

That occur over a period of time
It’s not some carefully crafted story
It’s a mess, and we’re all gonna die

If you saw a movie that was like real life
You’d be like, ‘What the here was that movie about?
It was really all over the place.’
Life doesn’t make narrative sense.”

“Porque a vida é uma série de revelações
que ocorrem num período de tempo
Não é uma história cuidadosamente criada
é uma bagunça e todos nós iremos morrer

Se você visse um filme como é a vida real
Você iria dizer: ‘Sobre o que diabos era esse filme?
Nada fazia sentido nenhum.’
A vida não faz sentido narrativo.”

Essa música talvez seja o primeiro momento em que Rebecca consegue enxergar com mais clareza que, às vezes, nossos erros precisam ser analisados de perto, em vez de fingirmos que nada aconteceu e continuar com a vida. Na história, ela acaba de transar com o pai de Greg, seu ex-namorado, ato que também é mais um reflexo do quão triste e miserável sua vida está naquele momento. Josh a pediu em casamento e a abandonou no altar, o seu conto de fadas se tornou um pesadelo e nem as músicas conseguem ser a mesma válvula de escape de antes.

Rebecca busca no conforto da ficção o sentido para a sua vida. Os musicais são seu refúgio, sua zona de conforto, pois neles cada personagem tem um objetivo e uma trajetória cuidadosamente traçada pelo autor. Contudo, a sua vida não é um musical. Por mais que números musicais aconteçam na sua história, eles são sempre colocados como delírios ou momentos de reflexão, licenças poéticas — afinal, Crazy Ex-Girlfriend não é a vida real.

Rebecca não pode cantar sobre como sua vida não faz sentido nenhum, pois ela está vivendo a sua vida. Apesar dela ser uma narradora não confiável, ela não é a única narradora: a história de outros personagens são contadas pelas suas próprias perspectivas. Rebecca é a protagonista, mas ela não é a única narradora da série, dando espaço para outros personagens cantarem suas músicas. Rebecca precisa ouvir o que Josh Groban canta, mas ainda não é possível ela mesma cantar. Às vezes, é preciso um narrador em terceira pessoa para fazer a personagem perceber o que já estava claro para todos os espectadores.

Em sua jornada de formação, “The End of The Movie” é o ponto de virada para Rebecca. É só depois dessa música que ela — e consequentemente nós, os espectadores — percebe que é possível aprender com os erros do passado e não é preciso tentar esconder e fingir que está tudo bem. A música também é parte de um dos arcos mais pesados e difíceis da série. Rebecca tenta acabar com sua vida, pois sua doença a impede de enxergar qualquer saída possível que não o suicídio. E porque Rebecca tem as vantagens de ser uma personagem fictícia, fica ainda mais clara a sua jornada de aprendizado a partir de então. Morrer não era a solução e Rebecca parte para o tratamento e busca de estabilidade emocional. O episódio do suicídio também é um ponto importante para os personagens ao seu redor entenderem que Rebecca não era só “peculiar”, mas estava doente e precisava de ajuda médica.

Romances de formação, em sua gênese, se relacionam com a imagem. O homem moderno, lá no século XVIII, perdeu sua conexão com o divino e precisava, de alguma forma, mudar a sua imagem a fim de recuperar sua ligação com Deus. É claro que, com o passar dos séculos, nem toda história precisa ter qualquer conexão com o divino, mas as jornadas de aprendizado continuam sendo boa histórias para se contar. Em Crazy Ex-Girlfriend, Deus não é uma questão, mas a imagem que Rebecca pinta de si mesma é a principal motivador da história: como ela e sua imagem exterior irão se reconectar?

Com o avanço da quarta temporada, fica mais claro que a jornada de Rebecca está chegando ao seu fim. Não é só porque sabemos que essa será a última temporada da série, mas também porque a Rebecca de agora se afasta mais do que nunca da Rebecca dos primeiros episódios. Algo dentro dela se transformou. Se no início a maioria das músicas eram sobre Rebecca e cantadas por ela, agora a personagem não canta nem a música de abertura — que muda em todas as temporadas e nessa faz questão de salientar o quanto Rebecca não se encaixa em nenhum estereótipo de personagem feminina clichê. Agora Rebecca não precisa mais se contorcer para caber numa pequena caixa que a limita, ela é inteira ela e precisa achar seu novo lugar no mundo.

Estou curiosa para saber como a jornada de Rebecca irá terminar, mas fico ainda mais entusiasmada com a história que está sendo contada. Crazy Ex-Girlfriend é uma série tão interessante na sua maneira de contar histórias que deixa espaço para inúmeras interpretações e análises. Mesmo sendo um produto audiovisual, as canções trazem a bagagem do lírico, junto de toda a tradição literária. É uma série que tem total controle de sua narrativa e por isso consegue brincar com conceitos, tropos e clichês. É mesmo uma jornada, pois não importa muito onde ela irá chegar, o que importa é como isso vai acontecer.

9 comentários

  1. Ótimo texto! Fico meio puta ás vezes do quão subestimada a série é, talvez por ser vista como “mais uma comédia romântica bobinha” por quem não ouviu muito falar…séries consagradas dramáticas são analisadas até a exaustão (principalmente com grandes protagonistas masculinos, como em Breaking Bad), mas com Crazy Ex, acho que por parecer de longe um “chick flick”, parece que já começam a assistir s série sem levar muito a sério – já vi umas duas youtubers teen falar que odiaram a série por ser sobre “uma mulher que larga uma vida ótima pra correr atrás de macho”, quando o piloto já tem várias cenas que estabelecem bem como a Rebecca, apesar de bem-sucedida, era super infeliz e parece ter um histórico de problemas não resolvidos (eu sempre lembro da primeira vez que eu vi a cena da Naomi falando “I hope this isn’t like your little suicide attempt in law school, you didn’t even break your skin and you inconvenienced a lot of people”, só essa fala fala muito sobre a personagem e o tipo de relacionamento que ela deve ter com a mãe). CEG tem camadas e nuances como as grandes séries tem, e eu adoro os textos de vocês, que analisam essas camadas de forma tão legal. Parabéns!

  2. Nossa! Que texto engenhosamente maravilhoso. Claro, a série ajudou bastante rss. Me apaixonei pela série justamente pelo fato das diversas nuances. A série é riquíssima e aborda um tema fora do comum, fora do nível de televisão aberta, sabe? Me apaixonei pelo mais “bobo” que percebi de cara na série: o biótipo da personagem principal. Não que seja ruim ou algo do tipo, mas é tão raro hoje a midia dá espaço de protagonista para mulheres que não tenham um “corpo real”. Eu assisto e recomendo. E também agora virei fã do blog. Vocês arrasam. Parabéns! Gostaria de ler sobre Scandal. Não sei se já escreveram sobre, se não, seria ótimo!

  3. Ótima série. Em relação a esses conceitos de formação, não tinha atentado pra isso. Muito legal essa visão acedmica e novos conceitos.
    Assisto com minha esposa e gostamos muito da série.
    Belo texto, parabéns.

  4. Teu texto está incrível e é uma ótima homenagem a essa história. Rebecca será pra sempre uma das minhas pessoas ficcionais favoritas; sua Jornada me inspira em todas as direções (eu AMO TANTO essa série!).
    Endossando aqui, texto riquíssimo em conteúdo (não conheço subvertentes de storytelling [não conheço nada sobre nada hahaha], agora tenho um motivo para ler o tal do Goethe!), parabéns!

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