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A Corrida de Escorpião: Puck Conolly e o protagonismo feminino

“Hoje é o primeiro dia de novembro, portanto alguém vai morrer.” São essas palavras que recebem o leitor que decide abrir as primeiras páginas do livro A Corrida de Escorpião, da escritora norte-americana Maggie Stiefvater. Lançado em 2011 e traduzido para o Brasil no ano seguinte, com casa na Verus Editora, o livro é o primeiro trabalho standalone (livro único) da autora, que assina as séries Os Lobos de Mercy Falls e A Saga dos Corvos.

Para quem está familiarizado com o trabalho de Stiefvater, A Corrida de Escorpião é uma ode ao que a autora faz de melhor, concentrado em 300 e poucas páginas. Para aqueles que desejam mergulhar de cabeça no mundo mágico e onírico, mas ao mesmo tempo real, da também desenhista, compositora e motorista de corrida nas horas vagas, o quarto livro de sua carreira é um bom lugar para começar.

Novembro é um mês importante, e também cheio de medo, excitação, caos organizado e corridas, para os moradores da razoavelmente pacata — em outras épocas do ano — ilha de Thisby. Isolada do resto do continente, o pedaço de terra que abriga pessoas simples, em sua maioria pescadores, vive diariamente o fascínio e o medo de dividir o oceano que os rodeia com os temíveis capall uisce (cavalos d’água), animais maiores que cavalos normais, com dentes enormes e afiados, que na primeira chance que tiverem devorarão qualquer coisa que se colocar em seu caminho.

“Eles são lindos e mortais, nos amam e nos odeiam.”

Quanto mais o penúltimo mês do ano se aproxima, mais os cavalos d’água ficam suscetíveis a passearam por terra e se tornarem um perigo para os moradores da ilha. Aproveitando o combo perfeito de medo e adrenalina ao se colocar em perigo, Thisby conta com a corrida de escorpião, prova que reúne dezenas de ilhéus dispostos a domar e montar os capall uisce em troca de dinheiro e prestígio.

Sean Kendrick é um desses competidores, apesar de seus motivos não estarem nem remotamente ligados a dinheiro e poder. Com 19 anos, ele já venceu quatro vezes as corridas e, mesmo sendo taciturno e “na sua”, é respeitado na ilha por esse feito. O garanhão Corr, a montaria de Sean, é vermelho e descrito por vezes como letal e uma visão do inferno. Apesar disso, o personagem é o único que consegue domá-lo, afinal se você quer controlar seu cavalo d’água, Kendrick é a pessoa certa a chamar. Mas se Sean é um filho das corridas e amante do oceano, Kate Conolly, ou Puck para os íntimos, vem de uma família que vive uma vida paralela a toda a agitação do esporte que movimenta a ilha. Para os pais de Puck, quanto menos os Conolly se envolverem com o fascínio e temor da ilha pelos capall uisce, melhor, até que os dois são mortos por um cavalo d’água, deixando os filhos órfãos e sem muito com o que se sustentar. Na iminência de perder a casa de sua família, ver seu irmão mais velho, Gabe, que deveria ser responsável por ela e seu irmão caçula, Finn, planejando trocar a dura e sangrenta vida em Thisby por uma vida mais justa no continente, Puck é levada a tomar as rédeas da situação.

Mas quando se trata de Thisby não existem muitas saídas, muito menos caminhos fáceis. Movida por sua personalidade atrevida, inteligente, durona e decidida, Puck decide participar das corridas de escorpião e usar o dinheiro da vitória para pagar as dívidas de sua família e manter seu lar. O primeiro detalhe a ser levado em conta nessa empreitada louca de Puck — como cada morador da ilha gosta de deixar bem claro — é que a personagem irá participar de um dos esportes mais mortíferos de que se tem registro com um cavalo normal, a sua égua Dove. Se as chances já são incertas quando se monta um capall uisce, qual a probabilidade de uma vitória vir de alguém com um “pônei”?

Outro detalhe crucial — pois como se trata de um livro de Stiefvater, há sempre algo a mais com o que se preocupar e nada é o que parece à primeira vista — é que Puck não é apenas a primeira pessoa que pretende participar do desafio mortal de Thisby com um cavalo comum, mas ela também é a primeira mulher a tentar fazê-lo. Puck Conolly, ao tentar encontrar uma maneira de sobreviver aos desafios colocados em seu caminho, não desafia apenas o furioso oceano de novembro e os carnívoros capall uisce, ela, mesmo sem a intenção, vai muito além disso e acaba despertando também a ira e ferindo o ego do patriarcado e do sistema machista reproduzido em Thisby.

“Eaton diz: — Ela não pode competir. Meu coração sai pela boca. Dove! Deve ser Dove. Eu deveria ter pego a égua malhada quando tive chance. — Nenhuma mulher competiu nas corridas desde que elas começaram — diz ele. — E este não será o ano em que isso vai mudar.
Encaro Eaton e os homens ao redor dele. Algo sobre a maneira como ficam juntos é familiar, cheia de camaradagem. (…) Sou a forasteira. A mulher.
De todas as coisas que poderiam se interpor entre as corridas e mim, não posso acreditar que esse será o problema.”

A partir daí o livro ganha um tom diferente, que até então não era evidenciado. Antes de perceber que, por ser mulher, sua participação na corrida poderia ser comprometida, acompanhamos uma Puck ciente de si, de seus desejos, maneirismos e personalidade, especialmente quando essas características são colocadas lado a lado com as de Sean Kendrick. Após o ritual de registro dos corredores, um novo personagem é acrescentado — oficialmente — à trama; o sexismo se junta aos personagens abstratos desenvolvidos por Stiefvater, como o amor de Kendrick pelo oceano, a magia que envolve a ilha e a paixão de ambos os personagens principais por seus cavalos.

Agora não é apenas o medo por sua vida, o futuro do nome de sua família e da melhor amiga, Dove, que ocupam a cabeça de Puck, mas também o temor de que, a qualquer momento, sua participação possa ser impedida, pelo simples fato de que, aos olhos dos ilhéus, o lugar de uma mulher não seja na praia e que seja contra a tradição uma pessoa do sexo feminino competir nas corridas de escorpião. A jornada da personagem ganha novos significados e desdobramentos após esse confronto, levando sua decisão de competir pelo prêmio ser, no mínimo, duas vezes mais difícil do que para qualquer outro inscrito. Sem um cavalo adequado, com o treinamento comprometido e nenhuma experiência, a determinação e ferocidade de Puck em continuar, de cabeça erguida, com sua decisão são admiráveis e a transformam em uma personagem cheia de inspiração para distribuir. Ouso dizer que, para Puck, o mundo real não seria assim tão assustador, já que enfrentar cavalos carnívoros nem é o maior problema que ela precisa combater em sua realidade.

“— As mulheres são a ilha, e a ilha nos mantém. Isso é importante. Mas são os homens que levam a ilha ao leito do mar e a impedem de flutuar no oceano. Não é possível ter uma mulher na praia. Isso inverte a ordem natural.”

Maggie Stiefvater é uma autora que trabalha com uma escrita poética, que jorra sentimentos, emoções, ações e palavras não ditas e que precisam ser capturadas nas entrelinhas. Em sua prosa, os detalhes são importantes e a cada leitura as frases ganham novos sentidos e desdobramentos. Por isso, rótulos dificilmente fazem parte das histórias da escritora. Ela apresenta suas ideias e constrói seus personagens da forma que acredita ser a melhor, embutindo neles personalidades tridimensionais, com uma profundidade e complexidade de dar inveja em qualquer pessoa que conheça seu trabalho. Assim, mesmo que temas relevantes, como feminismo e representatividade, se façam presentes na narrativa, Stiefvater não irá se vangloriar por estar dando espaço para essas lutas em seus livros. Para ela, a margem de interpretação deixada para o leitor é importante e priorizada em seu modo de contar histórias; após o lançamento, o livro se torna dos leitores e não mais um produto exclusivamente do autor. Desta forma, Puck não se denomina, ou é denominada, como feminista, mesmo que seu comportamento, ações e pensamentos possam ser remetidos como tais. A escritora deixa a cargo dos leitores decidirem o que as atitudes da personagem realmente significam.

“— Kate Connolly, você pretende mudar a sociedade?
— Não estou tentando mudar nada além da minha própria situação.
— Então você não diria que foi inspirada pelo movimento sufragista feminino?”

Além disso, para bom entendedor, meia palavra basta, e se Puck pode não ser alguém que segue a ideologia do movimento feminista na visão de alguns leitores, A Corrida de Escorpião certamente o é. Ao ter passagens tão duras e representativas de uma situação diária vivida por mulheres, como a descrita pela fala de um homem, que ao dizer que a ordem natural será invertida caso alguém do sexo feminino passe a desempenhar uma função diferente dos rótulos que lhe são atribuídos, o livro coloca o machismo em evidência. Podemos, como a maioria dos produtos que consumimos, especialmente os da cultura pop, utilizar essas situações como metáforas do nosso cotidiano. E ao inserir Puck em um ambiente majoritariamente masculino, Stiefvater nos mostra, de uma forma sensível, mas ainda assim realista e apurada, o que garotas que possuem atitudes que diferem, mesmo que minimamente, do estabelecido como “normal para uma menina” e de um “comportamento feminino”, ou que desejam seguir um curso de exatas, por exemplo, precisam enfrentar em suas jornadas até a concretização de seus sonhos, metas e desejos.

Desafiar os moldes pré-determinados pela sociedade, que ditam cada passo que meninas devem seguir, não vem sem consequências; a repressão e a falta de apoio e suporte também são sentimentos bem conhecidos. Na história de Puck, a única pessoa a tomar seu partido é Sean, o que é definitivo para seu futuro na competição — porque, em uma sociedade machista, assim que um homem respeitado diz o que pensa, mesma que isso vá de encontro ao que está sendo dito pela mulher, apenas a opinião dele será válida e levada em conta. Nenhuma das pessoas que convivem com a garota sequer a incentivam. Pelo contrário, tentam dissuadi-la a todo custo de não participar da corrida (mesmo que, nesse caso, o argumento utilizado seja a segurança de Puck, o que é justificável, não vemos ninguém utilizando a mesma linha de raciocínio para fazer qualquer dos homens competidores deixarem o esporte). Garanto que um cenário semelhante não deixa de ser associado pelas mulheres que lutam, por exemplo, pela permanência diária em um esporte considerado masculino, como o futebol.

Mas, apesar de tudo, Puck persistiu e mostrou para aqueles que quiseram lhe punir e reprimir por ousar ocupar um espaço que, segundo a tradição, não lhe pertencia, que sua determinação, sagacidade e autoconfiança podem ter fraquejado durante partes do processo, mas ela nunca se deixou abater completamente, lutando por si e por aqueles que ama até a linha de chegada. Puck não é apenas a protagonista do livro A Corrida de Escorpião, mas ocupa também — descrevendo em uma filosofia barata — o lugar de destaque de sua própria história.

“Eles não podem dizer que aqui não é o meu lugar. Podem me tirar daqui independentemente do que eu disser, mas não podem dizer que não é o meu lugar.”


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1 comentário

  1. Já conhecia os livros da Maggie Stiefvater, mas só em novembro do ano passado li esse livro (adorei a coincidência de ler no mês que se passa a história). Não sei porque sempre passei outros na frente. Não vejo blogs falando dele. Estão de parabéns!!! <3

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