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Uma mulher no meio do mundo: as constelações de Helena Zelic

Nunca enxerguei desenhos nas estrelas do céu. Constelações é o nome deles, como aprendi na quinta série, naquelas viagens de campo que fazíamos justamente pra olhar as estrelas longe das luzes da cidade. Escorpião, Áries, Câncer, Peixes (meu signo!), Andrômeda, Hydra, Cassiopeia (minha favorita, só porque o nome é engraçado), apontava o professor. “Vocês estão vendo?”, e todo mundo dizia que sim, e eu também, mas nem a pau que eu estava realmente enxergando alguma coisa ali além de estrelas, muitas delas. Acho mais fácil acreditar em astrologia do que em desenhos no céu. Mas que eles existem, existem.

Fiquei pensando sobre isso logo que recebi para resenhar Constelações, livro de estreia de Helena Zelic, lançado este ano pela Editora Patuá. Está escrito no prefácio assinado por Jarid Arrais: constelações são “estrelas que se agrupam e que parecem formar um desenho”. Não é a mesma coisa que poesia? Um conjunto de palavras que se unem para formar não uma frase, porque seria muito banal, mas um desenho no céu dos símbolos, algo com sentimento, imagem, força e um significado além, com o poder de fascinação parecido com o das estrelas no espaço.

Não consigo enxergar desenhos no céu, pensei, e também não sei ler poesia. E agora? Consigo ler as palavras, ligo um ponto no outro, tento adivinhar algum sentimento, mas nunca realmente sei se estou certa quanto ao seu significado, imediato ou distante. Seria mesmo um escorpião ali no céu ou é só minha vontade desesperada de identificar alguma coisa? Mas que ele existe, existe, eu lembro, e isso me consola.

Peguei o livro mesmo assim, pelo motivo que nunca deixei de ir a um trabalho de campo olhar as constelações: não é porque não vejo os desenhos que vou perder a chance de observar as estrelas. Assim, abri Constelações e olhei para o céu desenhado por Helena.

Encontrei lá uma mulher. O primeiro poema, intitulado “Uma Mulher Parada no Meio do Mundo”, diz que somos uma encruzilhada e também aquilo que coloca o mundo em movimento.

“Mas se essa mulher abre a boca
e canta suas cordas vocais
é como se o mundo fosse ela.
O resto, torto, é desnorteio
que nem vale a pena cantar.”

Lembrei imediatamente de Elza Soares e da música que dá título ao seu elogiado disco que saiu ano passado, A Mulher no Fim do Mundo: Elza canta que deixou na avenida sua voz, sua pele preta, suas opiniões, sua casa e sua solidão, e agora pede (simbolicamente, porque acho que Elza Soares é uma mulher que não pede nada pra ninguém) pra que lhe deixem cantar até o fim do mundo. Quem fala aqui é uma mulher que já viveu um mundo inteiro, o melhor e, principalmente, o pior dele, numa trajetória de violências e abusos frequentes por parte dos homens que amava, pobreza, preconceito, ódio e grandes tragédias, como a perda repentina da mãe e a morte de cinco de seus seis filhos. Mesmo assim, aos 79 anos, Elza Soares resiste, se reinventa e avisa que vai cantar até o fim do mundo.

Aos 20 anos, Helena Zelic está longe da beirada do mundo, por isso se coloca no meio dele. Ao longo do livro, encontramos várias outras mulheres: mulheres com filhos, mulheres que abortam, as que vivem nas esquinas, nas quebradas, nos barracos e nos bailes. Uma constelação formada por mulheres que inspiram, que escrevem e que se recusam a morrer de amor. Astronautas, prostitutas e garotas jovens que cresceram em apartamentos pequenos em cidades enormes. Encontrei Elza, Helena, sua avó e eu, e talvez por isso tenha achado sua poesia clara como o cruzeiro do sul no céu, o único desenho nas estrelas que nunca falho em identificar.

Além de estudante de Letras e editora de Literatura da Capitolina, Helena também é militante feminista e faz parte de projetos bacanas que buscam interseccionalizar o movimento, envolvendo mulheres negras, imigrantes e da zona rural (você pode conhecer um pouco mais sobre seu trabalho no seu blog e na sua newsletter). Acredito que venha de toda essa experiência a multiplicidade de vivências, histórias e dores distintas presentes em seus poemas. Em “Sobre Escrever” ela diz: “nunca escrevi sozinha/ não: porque sozinha não sinto/ sozinha sou semi-surda/ (…)/ tonta sem referência/ eu só existo/ se estiver comigo/ se ao lado delas”.  

Constelações é um livro que se constrói nas diferentes experiências femininas e cujo significado está na forma como a gente se identifica com elas e no que descobre sobre vidas distintas. Porque essa coisa de ser mulher, se é que é possível reunir tanta coisa numa frase só, é uma mistura dessa meia dúzia de aspectos que nos une, universalmente, e todos os tantos que nos fazem diferentes. Helena Zelic é uma mulher parada no meio do mundo e sua poesia direta, despretensiosa e delicada traça algumas linhas entre tantos pontos e forma alguns desenhos.

Acredito que o significado de cada um deles vai ser um pouco diferente para cada pessoa que o ler, ou até mesmo para cada momento diferente da vida, mas que ele existe, existe. E como brilha.


Constelações pode ser comprado diretamente no site da Editora Patuá e quem é de São Paulo pode encontrá-lo no espaço Tapera Taperá e na livraria-bar Patuscada.