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Como o futuro de Black Mirror enxerga as mulheres

Entrevistador: “Tem uma coisa que é realmente interessante nos seus livros: você escreve personagens femininas muito boas e muito diferentes entre si. De onde vem isso?”

George R. R. Martin: “Sabe, eu sempre considerei que as mulheres fossem… pessoas mesmo.”

Dizem as frases motivacionais de Facebook que quando você é maltratado por muitos anos, é difícil aceitar que alguém te trate com gentileza, porque nosso cérebro acaba sempre recorrendo ao que lhe é familiar, mesmo que ele seja desconfortável. Quando se trata de representação feminina na cultura pop, é fácil perceber que estamos todos desconfortavelmente acostumados a décadas de maus-tratos e é surpreendente quando, finalmente, esbarramos em personagens femininas bem desenvolvidas.

É o que vem acontecendo em Black Mirror nesta atual terceira temporada, disponibilizada recentemente pela Netflix, onde as mulheres finalmente encontraram seu merecido direito de serem paranóicas e assustadoras na antologia idealizada por Charlie Brooker.

Relembrando episódios memoráveis como “The National Anthem”, “The Entire History of You” e “White Christmas”, nota-se um padrão envolvendo personagens femininas nas tramas: elas são sempre as namoradas, esposas ou vítimas para engatilhar a história de um personagem masculino central. Ao passo que, em Black Mirror, todos acabam sendo alvos fáceis de outros seres humanos e seus aparatos tecnológicos, aos homens é concedido o direito de “bater de volta” ao se sentirem ameaçados ou perseguidos pelo roteiro, equilibrando-se com maestria na corda bamba entre vítima/vilão/protagonista.

black mirror

Mesmo quando ocorrem as cruéis reviravoltas do enredo que os deixam passivos, a história continua pertencendo aos homens e existe certa agência na sua apatia. Quando o Primeiro Ministro Callow (Rory Kinnear), que está condenado a copular com um porco em rede nacional, sofre, esperneia, tenta fugir, o episódio continua sendo só dele e é dele que lembraremos, enquanto sobre a Princesa Susannah (Lydia Wilson), refém e peça central da trama, nada sabemos.

O mesmo ocorre em todos os outros episódios das temporadas clássicas, sendo as únicas exceções “Be Right Back” e “White Bear”, cujos enredos até giram em torno de mulheres, mas ambas são apenas vítimas das circunstâncias com pouco ou nenhum poder de luta, apenas destinadas a aguentar e sofrer. O foco está sempre nos seus relacionamentos ou no obstáculo em si, nunca nelas.

Ao chegar na temporada atual, a diferença na abordagem das mulheres do seriado é palpável. Veja “Nosedive”, primeiro capítulo dessa nova fase, onde Lacie (Bryce Dallas Howard) é o alvo da vez, mas continua dona de sua narrativa até o final, mesmo perdendo totalmente o controle. Existem também outros personagens femininos interessantes, que interagem entre si e falam sobre outros assuntos além do estado civil.

Da mesma maneira, “San Junipero” e “Hated in the Nation”, outros destaques da terceira temporada, são histórias majoritariamente femininas, com ênfase no último, que mostra mulheres trabalhando juntas para salvar outras mulheres, sem nenhum indicativo de romance à vista. Até mesmo nos outros capítulos, enquanto coadjuvantes, personagens como Sonja (Hannah John-Kamen) e Katie (Wunmi Mosaku), de “Playtest”, e Raiman (Madeline Brewer), em “Men Against Fire” possuem mais relevância dramática e voz dentro da trama do que suas predecessoras.

Mesmo estando longe do ideal, pois ainda são oito episódios com protagonistas masculinos bem construídos e variando entre perfis e motivações, contra cinco capítulos femininos com personas homogêneas, alternando entre as sofredoras e as “duronas”, essa é uma série que continua milênios à frente de outras produções atuais e não só no que se refere à tecnologia.

Enquanto fenômenos da HBO como Game of Thrones e a novata Westworld utilizam mulheres nuas como puro objeto de cena sem propósito e matam, estupram e espancam suas personagens para criar ganchos para o próximo episódio, Black Mirror nos mostra que, em breve, mulheres poderão dançar ao lado do amor das suas vidas durante décadas a fio ou combater abelhas-drones-do-mal com a ajuda da sua parceira hacker para salvar a humanidade.

Por ora, só nos resta esperar que nesse futuro distópico, entre tons pastéis e webcams de vigilância, também haja espaço para contar as histórias delas.

2 comentários

  1. Discordo da análise de Westworld. Talvez você só tenha assistido um ou dois episódios, mas a trama de Westworld, que tem inclusive 2 protagonistas femininas, fala exatamente sobre quebrar o ciclo de violência contra elas. Uma foi criada como o arquétipo da dama em apuros e a outra o arquétipo da prostituta. E ambas, cada uma à sua maneira, cria consciência disso para quebrar o ciclo. A frase da Dolores é “I imagined a world where I didn’t have to be the damsel” e isso é o que define a história dela.

    Mas em relação a Black Mirror, eu concordo. A terceira temporada melhorou bastante a representação feminina.

    1. Oi, Bel! Tudo bem?

      Então, eu assisti a temporada inteira de WW.
      E sobre ela, é complicado. Ao passo de que Maeve e Dolores são ótimas personagens femininas e que a série busque uma certa ”dessexualização” do corpo, ao mostrar os anfitriões numa nudez sem conotação, ainda é possível perceber que a nudez feminina foi muito mais explorada do que a masculina.
      Maeve apareceu nua em milhares de cenas sem propósito nenhum, tal qual outras mulheres, apenas como ‘cenário’.
      Dolores, na sua primeira cena, foi vítima de estupro lá no celeiro, pelo Homem de Preto, e isso não foi discutido hora nenhuma, foi apenas uma ferramenta de roteiro.
      Acho que em parte isso vem da cultura da própria HBO, que inclui cláusulas de nudez nos contratos dos seus atores (aliás, os figurantes reclamaram bastante do assunto) e praticamente inventou o ”boobs mandate” e as cenas onde alguém, geralmente uma mulher, está pelado no background sem propósito nenhum. HBO vende sexo, violência e nudez, geralmente feminina.
      Mas isso é discussão para um texto no futuro, quem sabe!
      Beijo e obrigada por ler 🙂

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