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O cinema sul-coreano e a problemática dos remakes hollywoodianos

Mesmo com empecilhos linguísticos e culturais, o cinema possui uma boa parcela de sua trajetória atrelada a diluição de fronteiras através da circulação de histórias. Nesse contexto, ainda que o cinema hollywoodiano siga em posição de destaque em termos de produção e distribuição de obras, há uma pluralidade de países que contribuem com o avanço da sétima arte, como é o caso do cinema sul-coreano. Tal aspecto talvez seja um dos aspectos mais envolventes em torno do cinema, uma vez que traz a possibilidade de descobrirmos um novo mundo a cada filme. Nesse processo contamos com o apoio de artifícios como legendas, dublagem e tudo aquilo capaz de tornar acessível uma obra estrangeira. Entretanto, uma outra forma cada vez mais comum de se acessar histórias de outros países envolve a completa adaptação daquele conteúdo em um novo filme. Embora essa prática não seja uma novidade ou exclusividade estadunidense, os remakes da indústria hollywoodiana são aqueles que causam um maior impacto para o público do contexto brasileiro e de grande parte do mundo.

Onde quer que apareça uma história com potencial, surge também um grande estúdio em Hollywood interessado em produzir um remake. Tal fato por si só não é necessariamente um problema. No entanto, é preciso considerar que também existem problemáticas associadas a essa prática, especialmente quando os realizadores desconsideram o mundo para além de sua própria cultura. A fim de nos aproximarmos de alguns dos pontos problemáticos que envolvem os remakes hollywoodianos, esse texto terá como foco inicial obras sul-coreanas que chamaram a atenção dos grandes estúdios e tiveram seus direitos comprados para a produção de refilmagens.

Em termos de popularidade a nível mundial, o cinema sul-coreano ainda é relativamente novo. Apesar disso, desde o final da década de 1990 o país vem gradualmente acumulando participações expressivas em festivais internacionais de cinema e emplacando alguns sucessos de bilheteria. Esse avanço pode ser atribuído a soma de diversos fatores, dentre os quais vale destacar: o investimento de chaebols no cinema local (movimento que se iniciou com a Samsung em 1992 e foi seguido por outras grandes empresas do país), bons resultados de bilheteria interna (o país é um dos poucos do mundo no qual o cinema nacional é mais visto que o cinema estadunidense) e incentivo governamental (com ações que incluem desde o estabelecimento de cotas de telas definindo uma quantidade mínima de filmes nacionais a serem exibidos pelos cinemas do país e vão até o financiamento de produções através do KOFIC, organização do governo que apoia obras de baixo orçamento, filmes independentes, filmes com co-produção internacional, filmes de arte e documentários).

Cinema sul-coreano em Oldboy (2003) / Remake Hollywood em Oldboy - Dias de Vingança (2013)

Quando falamos em remakes, sabemos que inevitavelmente perdas e transformações fazem parte do processo. Nesse contexto, existem obras tão modificadas que sem alguma informação prévia é impossível saber que se trata de um remake, como é o caso de filmes como A Casa do Lago (2006), refilmagem do sul-coreano Il Mare (2000). Mas, há também aqueles que ficam marcados por tentar construir uma espécie de híbrido cultural sem se preocupar com o que há por trás de cada um daqueles elementos, resultando em construções controversas como é o caso de Oldboy – Dias de Vingança (2013) do diretor Spike Lee, remake de Oldboy (2003) do diretor sul-coreano Park Chan-Wook.

O caso de Oldboy – Dias de Vingança é talvez um dos mais emblemáticos entre os remakes hollywoodianos, já que o filme parece tentar transportar uma série de aspectos da cultura sul-coreana para os Estados Unidos, sem de fato compreendê-los. Resumidamente, a história original de Oldboy tem como protagonista Dae-Su (Choi Min‑sik), que foi raptado e mantido em cativeiro por 15 anos, tendo apenas uma TV como forma de contato com o mundo externo. Ao ser libertado, Dae-Su descobre que foi injustamente acusado pelo assassinato de sua esposa e opta por se dedicar em uma obsessiva busca por vingança. O filme em questão ganhou o Grand Prix na edição de 2004 do Festival de Cannes e consagrou o diretor Park Chan-Wook como um dos maiores nomes do cinema sul-coreano. Quando o remake de Spike Lee foi anunciado, Park Chan-Wook chegou a afirmar que estava curioso para ver como eles iriam adaptar os aspectos de seu filme que só fazem sentido na Coreia do Sul. Um exemplo disso consiste em uma das cenas mais populares do longa: um plano-sequência (plano que registra toda a ação, sem cortes) de mais de três minutos de luta em um corredor. A cena é tão famosa que acabou inspirando séries como O Demolidor (2015-2018) da Netflix e filmes como A Vilã (2017).

Entretanto, parte da lógica dessa cena está interligada a um importante aspecto dos filmes sul-coreanos, que por sua vez se conecta com a própria legislação do país. Park Chan-Wook em uma entrevista internacional chegou a explicar que as cenas de luta nos filmes que se passam na Coreia do Sul acontecem com uma grande variedade de armas brancas justamente porque a legislação rígida faz com que até mesmo grandes organizações criminosas atuem sem o uso de arma de fogo. O difícil acesso a armas torna plausível que o protagonista Dae-Su (Choi Min‑sik) enfrente dezenas de homens usando apenas um martelo. O diretor chegou a brincar dizendo que a mesma cena fora do contexto sul-coreano precisaria apenas de uma única bala da parte dos criminosos para terminar de maneira desastrosa para Dae-Su. Talvez a primeira vista a questão da ausência de armas de fogo em Oldboy possa parecer um simples detalhe, no entanto, parte das críticas que o remake de Spike Lee recebeu foram direcionadas a escolhas artísticas — referente ao modo como ele resolveu filmar certas cenas — e como a história parecia forçada em diversas situações. Afinal, quando foi que vimos criminosos nos Estados Unidos usando canos e facas como se tivessem esquecido todas as armas em casa?

Bong Joon-ho, o mais recente ganhador da Palme d’Or no Festival de Cannes deste ano reforçou o quão único e extremo o cinema sul-coreano se tornou por conta de aspectos socioculturais. Em uma entrevista publicada pela TIFF, Bong Joon-ho explica que se um país vive tempos turbulentos e difíceis, mesmo que inconscientemente, isso aparece em nossas emoções. É por essa razão que o diretor enumera fatores como a ausência de armas na sociedade sul-coreana, a cultura workaholic, o consumo de álcool excessivo e as dificuldades históricas que o país enfrentou como grandes influencias para o cinema local.

Um outro filme de ação sul-coreano que ganhou destaque nos últimos anos é a A Vilã cujo o remake para televisão ainda sem data de lançamento está sobre a responsabilidade da Skybound Entertainment. A obra original estreou durante 70ª edição do Festival de Cannes, realizada em maio de 2017. Mesmo sem concorrer a prêmio, A Vilã — originalmente denominado Aknyeo e promovido no festival sob o título em inglês The Villainess — do diretor Byung-gil Jung foi ovacionado com mais de quatro minutos de aplausos, chamou a atenção da crítica especializada e antes mesmo de sua estreia doméstica conseguiu ser vendido para companhias de distribuição em 136 países.

O enredo de A Vilã nos guia pela história conturbada de Sook-Hee (Kim Ok-bin), uma mestiça de origem sul-coreana e chinesa, treinada desde a infância para se tornar uma assassina. No filme somos apresentados a cada uma das tragédias pessoais que atravessaram a vida da protagonista. A partir disso, gradualmente a narrativa parece indicar que embora as contingências terminem sempre levando a personagem para um caminho sangrento, Sook-Hee segue apenas em busca de uma vida normal. Segundo o diretor Jung Byung-Gil, Sook-Hee representa pouco menos de 5% do cinema sul-coreano já que no país é extremamente raro a presença de uma protagonista feminina em um filme de ação. Durante as entrevistas para o Festival de Cannes, a atriz Kim Ok-bin contou que esse fato fazia com que a mesma sentisse uma enorme pressão com relação a sua performance no filme, já que o seu sucesso ou fracasso poderia afetar diretamente as chances que outras atrizes teriam de protagonizar filmes similares na Coreia do Sul.

Assim que estreou fora do circuito dos festivais A Vilã foi imediatamente apontado pela imprensa como a versão oriental de Nikita – Criada Para Matar (1990), do diretor Luc Besson ou de Kill Bill (2003 e 2004), do diretor Quentin Tarantino. Até a presente data as principais resenhas em sites como Rotten Tomatoes e IMDb ainda trazem o filme como uma versão asiática para as grandes assassinas do cinema ocidental. É claro que o cinema está sempre se relacionando com outras obras e as comparações de um longa com o outro seguem o caminho natural das coisas, entretanto é no mínimo controverso notar a forma como o ocidente foi escolhido como o grande ponto de referência nessas críticas. O que pouco se falou a respeito envolve não só o diálogo de A Vilã com outros longas do contexto asiático, mas principalmente o fato de que em primeiro lugar tanto Nikita – Criada Para Matar como Kill Bill buscaram suas respectivas inspirações no oriente. Quando questionado sobre o assunto, o diretor Byung-gil Jung chegou a comentar que a princípio há certa homenagem a Nikita na concepção de A Vilã, entretanto tudo é feito com um toque coreano. Já com relação a Kill Bill, Byung-gil Jung afirmou:

“Kill Bill, eu gosto de Kill Bill, mas eu diria que as sequências de ação são diferentes. A razão pela qual eu sinto que Kill Bill é muito mencionado, é por causa da cena em que Sook-hee está debaixo da cama vendo seu pai morrer, e também (o fato de ela também) ter seu vestido de noiva, talvez as pessoas sintam que é uma referência a Kill Bill, mas eu acho que esses tipos de artifícios foram usados antes mesmo de Kill Bill em muitos filmes de ação”SCREEN ANARCHY

De fato, Kill Bill não foi o primeiro a usar esses tipos de elementos. Além disso, o caso de Quentin Tarantino, conhecido por seus maneirismos e planos que buscam homenagear suas influências é talvez um dos mais evidentes exemplos de diretores ocidentais que buscam sua inspiração no cinema asiático. Kill Bill, inclusive, bebe diretamente da fonte do filme japonês Lady Snowblood (1973), longa que corresponde a uma adaptação do mangá de Kazuo Koike e foi adotado por Tarantino como inspiração narrativa e visual.

As comparações de A Vilã com filmes ocidentais e os problemas de adaptação encontrados em Oldboy são faces diferentes de um mesmo problema. Tanto uma grande parcela do público, como também diversos roteiristas, diretores e produtores de filmes de Hollywood já internalizaram diversos aspectos da cultura oriental como um simples acessório estilístico. É por esse motivo que não faz sentido para alguns produtores entender o que há por trás das escolhas artísticas presentes no cinema sul-coreano. O exemplo da variedade de armas nas lutas em filmes de ação é apenas uma simples ilustração para que possamos começar a nos aproximar dessas questões. No entanto, temos ainda aspectos como o sistema de hierarquia que dá forma às relações interpessoais dos personagens, as questões de gênero que atravessam a criação de uma protagonista como a Sook-Hee de A Vilã, os ditados e princípios que explicam parte das ações dos personagens de Oldboy e muitos outros.

Alguém poderia argumentar que sendo os filmes de Hollywood melhores difundidos aqui no ocidente é natural que o público ao entrar em contato com o cinema sul-coreano, ou asiático, no geral, faça comparações usando como base aquilo que ele conhece melhor, ou seja, outros filmes hollywoodianos. No entanto, sabemos que não é apenas o público comum que organiza seus parâmetros assumindo que a cultura ocidental é de algum modo soberana. Mesmo se deixarmos um pouco de lado os exemplos sul-coreanos, é possível notar que existe uma postura similar com obras advindas de outras partes da ásia ou em setores completamente distintos como a indústria cinematográfica de Bollywood.

Tejaswini Ganti, uma importante pesquisadora do cinema indiano, já chegou a criticar em um dos seus livros a forma como os pesquisadores ocidentais definiam filmes como os masalas. Masala é na verdade um termo que tem sua origem na culinária e é utilizado para descrever uma mistura de temperos, ervas, especiarias e aromatizantes acrescentados em pratos indianos. Entretanto, no contexto do cinema de Bollywood, o termo masala desde a década de 1970 tem sido utilizado para identificar filmes que frequentemente misturam diversos gêneros. Para Tejaswini Ganti, o termo masala acabou se tornando a base para o estereótipo mais comum dos comentaristas ocidentais e espectadores não familiarizados com o cinema indiano. A definição popular de masala transmite a ideia de que o cinema hindi carece de gêneros ou que vários gêneros são combinados dentro de um único filme, ou seja, os masalas são vistos sempre como uma mistura de gêneros e nunca como um gênero próprio do cinema indiano. Para a autora, essas percepções revelam uma incompreensão do conceito de gênero e se baseiam em noções de que as categorias de gênero específicas do cinema americano ou europeu são de alguma forma universais, atemporais e absolutas. Ganti explica que, na verdade, gêneros resultam de uma combinação de estratégias de marketing da indústria cinematográfica, expectativas do público, crítica de cinema e análise acadêmica.

A crítica de Tejaswini Ganti é importante aqui para destacar o quanto estamos acostumados a assumir erroneamente que as produções ocidentais são um ponto de referência universal. É uma realidade que acaba incluindo o público, os produtores e em alguns casos até mesmo pesquisadores. Quando analisamos os remakes de Hollywood com seus originais advindos do oriente, tudo fica mais evidente já que existe aí um caminho mais fácil para a comparação. Entretanto, mesmo em obras originais podemos notar a presença de elementos óbvios da cultura oriental sem que isso reduza de algum modo a obra. É por isso que mesmo que Tarantino tenha se inspirado em um filme japonês para a produção de Kill Bill, você nunca verá um crítico chamando sua obra de a versão ocidental de Lady Snowblood. No entanto, filmes como A Vilã e Lady Vingança (2005) seguem sendo difundidos como uma versão oriental de Kill Bill.

Nesse ponto, podemos completar a ideia apresentada mais cedo nesse mesmo texto afirmando que os remakes hollywoodianos pecam na adaptação de obras orientais não só porque seus produtores ignoram o que há por trás dos aspectos culturais que delineiam essas obras, mas porque todo o nosso sistema funciona com base na ideia de que a cultura padrão do cinema de Hollywood é universal e hegemônica. Essa noção é tão difundida que chegamos ao ponto ignorar o quanto o cinema estadunidense bebe de todas as fontes possíveis, ao mesmo tempo em que assumimos que tudo aquilo que vem de fora de Hollywood está sempre se referenciando nela.

Quanto às atitudes da indústria cinematográfica, não há muito o que possamos fazer. Entretanto, para nós que acompanhamos obras audiovisuais, seja como entretenimento ou como objeto de estudo, esse texto fica como um alerta que pode levar a descobertas incríveis. Existe muita coisa interessante para além de Hollywood e os produtores estadunidenses reconhecem esse fato sempre que anunciam um remake ou buscam inspiração externa. Ainda que na maior parte das vezes a cultura não ocidental venha como um acessório para esses filmes, existe aí uma oportunidade para buscar as fontes primárias e explorar histórias que dificilmente alcançam os cinemas da maior parte do país. Sejamos portanto um pouco mais receptivos com o que há para além de Hollywood, mas também um pouco mais atentos para o modo que compreendemos e julgamos essas produções.

1 comentário

  1. Obrigada pelo texto, eu estava atrás de algo assim, que pudesse retirar as vendas do meu olhar ocidental.

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