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Please Like Me: chorando de rir ou rindo para não chorar?

Quando fui recomendar a série Please Like Me para uma amiga, eu usei as seguintes referências: “É tipo Master of None, só que o personagem principal é gay, a série é australiana, a galera é mais jovem e tem menos grana e fala mais sobre saúde mental.”

Comparei primeiro com Master Of None porque, assim como Aziz Ansari, Josh Thomas, criador e ator principal de Please Like Me, vem de uma carreira como comediante. A série também segue uma dinâmica parecida; um grupo de amigos na faixa dos vinte e poucos anos vivendo e tendo questões sobre relacionamentos, família e sobre eles mesmos.

Atenção: este texto contém spoilers!

No primeiro episódio da primeira temporada, a namorada de longa data de Josh (Thomas) termina o relacionamento porque tem certeza que ele é gay — e ela estava certa —, Josh quase tem sua primeira relação sexual com outro homem e sua mãe é hospitalizada após uma tentativa de suicídio. É a partir desse começo conturbado que a série se desenrola e aborda temas como saúde mental, sexualidade, amizade, luto, relações amorosas e familiares de maneira profunda e surpreendentemente leve, com bastante humor.

Ao longo das quatro temporadas, Josh precisa lidar com a relação complicada com o pai e a madrasta mais jovem, com a mãe em tratamento, diagnosticada com transtorno bipolar, com seu melhor amigo, Tom (Thomas Ward) e sua longa lista de ex-namoradas, sua ex-namorada e amiga, Claire (Caitlin Stasey), e seus próprios problemas e relacionamentos. Josh primeiro namora Geoffrey (Wade Briggs), principalmente pela sua disponibilidade e aparência física, e depois tem uma relação séria e duradoura com Arnold (Keegan Joyce), que frequenta a mesma clínica psiquiátrica que sua mãe.

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Josh ainda não terminou a faculdade (ele estuda Indústrias Criativas, mas nunca parece se dedicar ao curso nem ir para as aulas) e mora com seu melhor amigo, Tom, numa casa bancada por seu pai em Melbourne. Ele gosta de cozinhar enquanto dança e canta (todos os episódios da série têm os títulos com comidas e/ou bebidas) e é exatamente isso que acontece em quase todos os episódios. Senão Josh, outras personagens cozinham enquanto cantam e dançam a adorável música tema durante a abertura da série.

O título da série faz jus às personagens, que sempre precisam de atenção e aprovação dos outros e é também um retrato coerente da geração millennial; jovens auto-centrados, cheios de insegurança e mais abertos que gerações anteriores para discutir a própria vulnerabilidade. A passagem da adolescência para a vida adulta é conturbada e nada clara. Em que ponto deixamos de ser responsabilidade de nossos pais para nos tornamos responsáveis por eles? Eu não sei, e nem Josh sabe, mas mesmo sem saber nem entender muito bem, seguimos em frente.

Um dos temas principais que está presente em todas as temporadas é a doença da mãe de Josh, Rose (Debra Lawrance), e suas tentativas de suicídio. Num primeiro momento, após a Rose ser diagnosticada com transtorno bipolar, Josh decide retornar para a casa da mãe, mas sem deixar de visitar frequentemente seu antigo quarto na sua casa que divide com Tom. Josh ainda não se sente pronto para sair do armário para a família, e quando acontece, nem sua mãe nem seu pai parecem surpresos. Apesar de morarem juntos ao longo de toda a primeira temporada, Josh e Rose evitam falar sobre a doença de Rose e como isso afeta seu filho. O silêncio só é quebrado no episódio “Mix de Nozes e Frutas Secas”, na segunda temporada, quando Rose é internada numa clínica psiquiátrica e, após o suicídio de sua amiga e companheira de quarto, Ginger (Denise Drysdale), decide ir à Tasmânia por alguns dias com o filho, onde eles acampam, andam, conversam e choram. É só através de outro suicídio que Rose se sente capaz de se pronunciar e articular pela primeira vez sobre a sua doença e suas consequências, permitindo também que Josh consiga falar sobre seus sentimentos e seu medo de perder a mãe, de vê-la indo embora aos poucos.

Quando Rose se abre para sua família, suas atitudes caminham para a melhora; ela volta para a clínica, toma seus remédios e dedica tempo aos amigos. Para uma comédia, Please Like Me é estranhamente real, pois não romantiza nem suaviza a batalha contra a depressão, ao mesmo tempo que nunca deixa o humor de lado, apesar de tratar de outros assuntos difíceis, como o luto — porque até quando a situação está muito ruim, sempre há motivos para rir de si mesmo. E, às vezes, tudo o que se precisa é cantar “Love Yorself” numa van em movimento com seus amigos e recém ex-namorado.

Suicídio, depressão, saúde mental são assuntos hoje em dia cada vez mais explorados por produções televisivas e cinematográficas. Séries como 13 Reasons Why, além de fazerem muito sucesso, colocaram em discussão supostos erros e acertos nas maneiras retratar e representar personagens neuroatípicos e histórias sobre suicídio. Sem se tornar pesada demais nem precisar do rótulo de “história sobre suicídio”, Please Like Me aborda esses assuntos sem medo e, ao mesmo tempo, de maneira muito natural. A vida de Josh não se resume a cuidar de sua mãe; embora ele se preocupe bastante com ela, Josh também possui sua vida, suas questões, suas batalhas, seus amigos, seus relacionamentos. O pai de Josh, Alan (David Roberts), apesar de se sentir culpado pela doença de sua ex-esposa e achar que tal doença é consequência do divórcio,  não deixa de seguir com  a sua vida; ele tem outra filha com sua namorada, Mae (Renee Lim), e pretende se casar com ela. Não que Rose seja negligenciada, pelo contrário, mas sua narrativa é apenas uma das várias narrativas que compõem a série, como um tecido que é constituído de diversos fios e que juntos formam um todo, uma história.

Ao contrário de muitas produções sobre jovens adultos, a série não se limita a desenvolver as personagens jovens e passa bastante do seu tempo — e às vezes episódios inteiros — com o núcleo mais velho. Os pais de Josh, por exemplo, possuem bastante tempo de tela, principalmente sua mãe, que ganha muito destaque no arco sobre sua doença; durante grande parte da segunda temporada, Rose está internada numa clínica psiquiátrica e na maior parte do tempo é lá onde as tramas se desenvolvem. A série não dá para trás quando retrata o cotidiano da clínica. É onde que conhecemos Ginger e Hannah (Hannah Gadsby), que terá grande importância para o resto da série, assim como sua amizade com Rose e sua trajetória de recuperação.

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Um dos arcos principais da primeira temporada é a reaproximação de Josh e sua mãe da velha tia Peg (Judi Farr), cuja presença não era muito desejada, mas devido a necessidade de não deixar Rose sozinha, ela volta a participar do núcleo familiar com frequência. Apesar de ser muito religiosa, ela não rejeita Josh quando ele se assume gay e, mesmo insistindo para que o sobrinho vá à igreja, ela não tenta mudá-lo ou excluí-lo de sua vida, e faz um discurso na frente de toda a congregação e do padre sobre aceitar e amar Josh e sua orientação sexual.

Please Like Me tem um tom levemente fantástico e nonsense, típico de algumas comédias, em que é possível acontecer situações improváveis, mas de forma orgânica e sem destoar do restante da série. Ao mesmo tempo que a tia Peg parece uma personagem inventada, ela é tão ficcional quanto outras tias velhas e distantes de qualquer outra família existente na vida real, pois a nossa realidade também consegue ser tão nonsense — ou até mais — que a ficção.

Please Like Me se aproxima de outra série de comédia sobre jovens nos dias de hoje, Girls. A série de Josh Thomas se assemelha à produção de Lena Dunham quando retrata jovens adultos às vezes egoístas demais e com ideias ocasionalmente um pouco tortas. As personagens de Please Like Me são mais simpáticas e, mesmo sendo bastante auto-centradas, demonstram mais interesse e dão mais importância aos outros à sua volta. Contudo, o ritmo acelerado dos diálogos e a ambientação simples e realista, assim como a apresentação crua e sem muitos julgamentos sobre as personagens e suas histórias são muito parecidas nas duas séries.

Outro ponto importante da série é a amizade entre Josh, Tom e Claire. Apesar de terminar o namoro com Josh logo no primeiro episódio e de também brevemente namorar Tom, Claire não desaparece como acontece em muitos términos de relacionamento e continua a frequentar a casa de seus amigos (e também ex-namorados) e a participar de suas vidas. É bonita a construção da relação entre os três, porque mesmo com todas as turbulências e sentimentos, a amizade é o laço mais forte e resiste a qualquer ressentimento.

No episódio “Macarrão com Queijo e Trufas”, também na segunda temporada, Tom come sem saber todo o macarrão com óleo de trufas que Josh fez para se despedir de Patrick (Charles Cottier), que morava com os dois amigos e por quem Josh tinha uma crush. Como vingança, Josh prende Tom no seu quarto fazendo uma barricada com móveis na porta. Preso, só resta a Tom conversar com Josh e Claire. Eles se zoam quando Josh precisa terminar seu currículo, pois seu pai decide que não irá mais sustentá-lo, mas também acabam conversando sobre o relacionamento entre os três. Claire, que namorou os dois e depois se mudou para a Alemanha para dar espaço para Tom após o término, confessa que irá voltar a viver fora do país. Tom revela que gostou de verdade de Claire, diferente de suas outras namoradas e Josh, dividido entre lamentar a partida de Patrick e se entusiasmar com a perspectiva de outro relacionamento, escuta a conversa íntima entre os dois a princípio como brincadeira, para depois perceber que os sentimentos deles são assunto sério. É um episódio singelo, com diálogos que dizem muito mais nos silêncios do que pelas palavras e também representa muito bem a série e suas personagens; Josh, Tom e Claire podem não ser os melhores amigos para se ter, mas são os melhores que eles têm e isso é o bastante.

Claire, assim como Rose, é uma importante personagem feminina na série. Mesmo com as idas e vindas de seus relacionamentos e mudanças de país, a personagem sempre consegue se fazer presente. Na terceira temporada, quando ela volta definitivamente para a Austrália, sem dinheiro e sem casa, Claire vai morar junto com Josh e Tom. Grávida, Claire decide fazer um aborto e pede para Josh a acompanhar. A série retrata mais uma vez um assunto considerado tabu com muita sensibilidade e maestria. Claire não se sente culpada, mas um pouco quebrada, e é assim que ela descreve seu sentimento comendo frango frito com Josh deitada na cama: “É só isso… nós somos adultos. É isso. Não estamos mais treinando.”

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Ao final da quarta e última temporada, embora algumas coisas permaneçam iguais, Josh, pela primeira vez, toma para si o controle sobre sua própria vida. Os dois amigos, Josh e Tom, decidem ir morar em lugares diferentes. Apesar da mudança de Tom ser um desastre e ele acabar indo para o novo apartamento de Josh, os dois tomaram decisões que não tomariam nas primeiras temporadas. Mesmo que as novas empreitadas não tenham dado certo como se esperava, a vida continua, sendo um sucesso ou fracasso. Please Like Me não pára no tempo; é uma série coming of age, ou seja, que fala da passagem da adolescência para a vida adulta. É uma série sobre descobertas que faz questão de construir arcos de desenvolvimento e amadurecimento para suas personagens.

Muitas vezes criticamos a ficção por ela destoar demais da realidade, criar um mundo fantástico que não seria possível existir no mundo real. Outras vezes criticamos a ficção quando ela não se afasta da realidade, quando retrata situações cotidianas pelas quais todas as pessoas passam. Please Like Me ficaria nessa segunda categoria, mas não apenas porque a realidade da série é absurdamente real e fantasticamente cotidiana. Os acontecimentos mostrados fazem parte do cotidiano: amigos conversando, familiares visitando uns aos outros, relacionamentos começando e terminando, assim como na vida real, mas a riqueza da série é conseguir descrever e construir um universo tão ficcional quanto a realidade. Coisas incríveis e surpreendentes acontecem todos os dias, no cotidiano das pessoas, na rotina do dia a dia. Às vezes, uma pessoa fala algo que ninguém esperava, ou a mãe da sua amiga de repente é diagnosticada com um câncer terminal. A realidade pode ser muito mais do que realista e é isso que Please Like Me consegue mostrar. Afinal, toda ficção, seja ela mais fantasiosa ou não, partiu do real para ser produzida. Por isso Please Like Me é tão engraçada e, ao mesmo tempo, tão trágica, porque assim também é a vida. E saber rir de si mesmo é uma qualidade quase que essencial para a própria sobrevivência.

2 comentários

  1. Texto maravilhoso! Amo Please Like Me e acho incrível como o roteiro mostra assuntos extremamente pesados com leveza, com esse sentimento de “a vida é assim mesmo”.
    ****SPOILERS*****
    Fiquei devastada no final. Além do motivo óbvio, tbm porque a Claire se afastou dos meninos, e é dolorosamente real que amizades que a gente acha que vão durar para sempre acabam indo por caminhos diferentes. Também senti que o Tom não evoluiu muito, ele parecia pronto a tomar decisões adultas e acaba voltando dez casas no jogo da vida.
    Enfim, a série é linda, dá para ver que o objetivo não é contar uma história grandiosa ou fazer as pessoas rolarem de rir, mas simplesmente contar a vida do Josh.

  2. Eu amei Please Like Me, assisti tudo novamente quando terminei. Eu com meus 23 anos, larguei um curso de engenharia após 4 anos, desempregado, muitas mudanças ocorrendo, me senti super representado pela série. Rolou aquela paixão imediata. Além daquelas cores lindas. Gente, quero morar naquela casa, quero ser amigo daqueles 3, quero namorar Arnold (lindoooooo kkk). Enfim, um achado e tanto.

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