Categorias: TV

Cat Grant: a verdadeira garota de aço

As duas pessoas mais poderosas de National City são mulheres. Uma delas é Kara Danvers (Melissa Benoist), também conhecida como Supergirl, jornalista determinada e de sorriso adorável que nas horas vagas combate o crime com seus super poderes e impede que invasores de outros planetas destruam a Terra. A outra é Cat Grant (Calista Flockhart), também jornalista e fundadora da CatCo Worldwide Media, conglomerado midiático de grande influência para aquele universo; uma mulher destemida, feroz e implacável.

Muito já foi dito sobre Kara Danvers; ela, afinal, é a protagonista de Supergirl, a heroína que crianças querem ser e que os adultos confiam o suficiente para que salvem o dia sempre que necessário. Muito pouco, no entanto, é dito sobre Cat Grant: para todos os efeitos, ela é uma mulher arrogante e extremamente profissional, alguém que dificilmente dá vazão ao seu lado mais humano. É fácil que essa primeira impressão se transforme numa barreira que não permite enxergá-la por trás da postura impassível de chefe que constantemente se coloca no caminho de Kara (em muito, para motivá-la em sua jornada pessoal), mas existe mais sobre Cat a ser descoberto.

Atenção: este texto contém spoilers!

Sua imagem come a ser construída antes de aparecer em cena: Cat Grant é a mulher mais poderosa de National City, é o que Kara garante em voice over e a expectativa pela sua chegada a cada manhã no trabalho corresponde às expectativas: ela não dá bom dia, insiste em chamar Kara, então sua assistente, pelo nome errado, reclama do perfume barato de alguém no elevador e usa roupas que reforçam sua posição no mundo, e essa posição é a de uma mulher poderosa e hostil. Dona de uma língua ferina, Cat nem sempre é uma mulher fácil de amar. Moralmente ambígua, agressiva, exigente em níveis irracionais e arrogante ao ponto de ser grosseira, ela esquece o bom senso se isso lhe garantir o primeiro lugar, o primeiro furo de reportagem.

A postura hostil, no entanto, não é fruto do acaso: anos e anos de trabalho duro a ensinaram que ser uma boa profissional não era suficiente: enquanto mulher, ela precisa ser sempre mais. Cat se torna jornalista por escolha, mas desde o início precisa forjar um espaço para si mesma, onde poderia crescer mesmo quando lhe diziam o contrário. Ela começa a construir seu império como colunista de fofocas do Planeta Diário — ironicamente, uma área tida como feminina e, por consequência, de menos importância —, numa mistura de talento, determinação e jogo de cintura. Nos anos como repórter, ela trabalha de forma frenética para fazer o seu nome, mas em meio à ascensão ela descobre que precisa abrir mão de certos espaços em sua vida; espaços que, de certa forma, também precisavam ser ocupados. Cat engravida acidentalmente ainda no início da carreira, o que nunca estivera em seus planos imediatos, e que lhe obriga a tomar uma decisão: abandonar o seu sonho de se tornar uma grande jornalista ou abrir mão da maternidade. Inicialmente, ela tenta equilibrar ambas atividades, mas, conforme explica em “Hostile Takeover”, eventualmente a decisão se torna imprescindível. Cat, então, decide abrir mão da maternidade, e, mesmo ponderando se essa é a decisão certa e garantindo que a criança tivesse um futuro, a culpa nunca deixa de persegui-la.

Cat: Não faz ideia de como é o momento em que você diz para si mesma: ‘talvez meu filho fique melhor sem mim’.  

Kara: Eu só sei o que é se questionar sobre as escolhas de uma mãe. Faria uma escolha diferente se pudesse voltar atrás?

Cat: Parei de me perguntar isso há alguns anos. Não estar presente para Adam é o meu maior arrependimento, e agora alguém está prestes a revelá-lo ao mundo.

Kara: Talvez você possa falar com ele. Tentar fazê-lo entender.  

Cat: Não. Depois de tanto tempo, não posso fazer isso. Ele vai se machucar. Por minha culpa. De novo.

Anos mais tarde, quando Adam Foster (Blake Jenner), seu filho, retorna para dar uma segunda chance à mãe, esses velhos fantasmas retornam ao presente de Cat. A experiência de ter um filho e não poder criá-lo deixa marcas indeléveis em sua vida, e também na de Adam: os dois não conseguem se entender e frustram-se ao descobrir que esse talvez seja um laço que jamais possam reconstruir. Anos mais tarde, já como uma mulher bem-sucedida profissionalmente, Cat se torna mãe solo outra vez, mas o contexto é completamente diferente. Com Carter (Levi Miller), seu filho mais novo, ela tem a chance de ser o que nunca foi para Adam e concilia a maternidade e a carreira sem grandes problemas — o que demonstra que mulheres podem ser mães e profissionais ao mesmo tempo e obter sucesso em ambas as coisas. Adam, no entanto, não deixa de ser um lembrete vivo daquilo que ela não fora para ele, mas que poderia ter sido, mesmo que isso não necessariamente lhe trouxesse satisfação ou fosse o melhor para o filho, o que também gera culpa.

Cat se mantém num eterno “e se” — e se não tivesse abandonado Adam, e se não tivesse priorizado a carreira, e se tivesse decidido ser mãe — e só aos poucos ela consegue, se não superar esse fantasma, ao menos olhá-lo com mais gentileza e coragem. É uma tentativa de humanizá-la que funciona e mostra uma faceta que não fica óbvia desde o princípio: antes de ser Cat Grant, empresária e jornalista de sucesso, ela é Cat Grant, mulher e mãe imperfeita, uma faceta a que poucos têm acesso (ela não permitiria que muitos tivessem), mas que não deixa de ser menos real por isso.

Eventualmente, Cat consegue tocar a própria vida e chegar onde sempre sonhou. Mas, diferente de seus colegas de profissão, a quem tudo é permitido, precisa fazê-lo com cuidado: cada passo em falso ao conduzir a carreira pode significar o fracasso profissional. Quando Kara perde as estribeiras, como qualquer ser humano, é Cat quem a lembra que o fato de ser mulher muda absolutamente tudo e que ninguém jamais vai permiti-la se expor desse modo — a não ser, é claro, que ela esteja interessada em assassinar a própria carreira. “Red Faced” é inteiramente construído a partir de situações incômodas que exigem cuidado extra por parte das mulheres da série. Cat precisa lidar com a própria mãe, que coloca defeito em tudo que a filha faça e nunca reconhece seus esforços; Kara precisa encarar as próprias frustrações como Supergirl, jornalista e mulher. Ela se ressente porque as pessoas não a tratam como uma heroína, pelo relacionamento de Lucy (Jenna Dewan-Tatum) e Jimmy Olsen (Mehcad Brooks) e pela forma como é tratada pela própria Cat.

Mais tarde, a mesma Cat que insiste em chamá-la todos os dias pelo nome errado lhe diz, com todas as letras, que todas as pessoas sentem raiva e que não há como eliminar as emoções de uma hora para outra, mas que é preciso descobrir o que de fato incomoda para, então, encontrar uma forma da lidar com o problema — seja dando gritos na cara de alguém ou fazendo aulas de boxe.

Cat: É o seguinte, Kerah: todo mundo fica irritado. Todo mundo. E não há uma pílula que elimine essa emoção. (…)

Kara: Srta. Grant, sinto muito. Sinto muito por…

Cat: Você se desculpa demais, o que é outro problema, mas está relacionado. Estou falando sobre trabalho e irritação. Não importa o motivo, você não pode se irritar no trabalho. Principalmente se você é uma mulher. Quando eu trabalhava no Planeta Diário, Perry White pegou uma cadeira e jogou pela janela porque perderam um prazo. E não, ele não abriu a janela antes. Se eu tivesse jogado uma cadeira, ou, meu Deus, se eu jogasse um guardanapo, estaria em todos os jornais. Seria suicídio profissional e cultural. 

Muito embora Cat seja uma mulher arrogante em muitos momentos, ela também é uma pessoa machucada e que diz muitas verdades. Como mulher, e uma mulher em posição de poder, Cat é uma minoria qualitativa — porque, embora quantitativamente sejamos maioria, ainda ocupamos espaços e posições muito restritas, inclusive no mercado de trabalho. Sua postura é parte do mundo em que se encontra, mas houvesse um homem em seu lugar, as reações seriam outras.

Como outra importante personagem da cultura popular, Cat Grant mantém uma imagem que performa a feminilidade socialmente construída: ela está sempre bem vestida e bem maquiada, com o cabelo sempre feito e usa saltos imensos sem dificuldade. Entretanto, para além da estética, a construção de feminilidade também inclui a submissão e docilidade, características que Cat evidentemente não possui — o que tampouco a faz uma mulher frustrada e infeliz. Se existem questões com as quais Cat precisa lidar, elas existem porque ela é humana, e adicionam nuances ao seu desenvolvimento sem cair no estereótipo da mulher bem-sucedida profissionalmente, mas infeliz em todos os outros âmbitos da vida.

Cat também utiliza sua posição privilegiada para promover causas feministas e dar um empurrãozinho em outras mulheres, incluindo a super-heroína que dá título à série. É Cat, inclusive, quem batiza o alter-ego da última filha de Krypton, em uma das cenas mais importantes da série: enquanto Kara questiona o motivo de tê-la batizado como Supergirl, com medo de que o “girl” [garota] em seu nome pudesse minimizá-la de algum modo, Cat ressalta que não há o menor problema em ser vista como uma garota.

Kara: Supergirl? Não podemos chamá-la assim! Desculpe, só acho que não devemos minimizar a importância disso, de uma super-heroína! Não deveríamos chamá-la de Superwoman? Se nós a chamarmos de Supergirl, algo menor do que ela é, isso não nos faz culpadas de sermos anti-feministas?

Cat: O que há de tão ruim sobre ser uma garota? Eu sou uma garota, e sua chefe e poderosa e rica e gostosa e inteligente. Então se você encara a Supergirl como qualquer coisa menos do que excelente, o real problema não seria… você? 

É uma questão relevante, não só porque levanta problemas sociais — e, consequentemente, estruturais —, mas porque possibilidade uma discussão real sobre o que de fato significa ser uma garota. Se a pedofilia é um crime explicitamente condenado, o fato de mulher continuarem a ser instigadas a manter a aparência jovem, por vezes infantilizada, para manter-se em padrões de beleza vigente, são bem menos condenáveis, como a sexualização de meninas desde muito jovens também não é. O ponto de vista de Cat, porém, abre espaço para uma nova interpretação, porque nega que o termo “girl” tenha algo a ver com infantilização ou menosprezo ao feminino. Calista Flockhart, que dá vida à personagem, tem 52 anos e toda a construção da própria Cat não poderia estar mais distante da imagem de garotinha imaculada e indefesa; ainda assim, ela continua a ser uma garota. Ou seja, garotas ou mulheres, o fato é que somos o que somos.

Ainda que, por motivos pessoas da atriz, Cat não seja mais uma personagem fixa, o primeiro ano da série acompanhou o relacionamento entre ela e Kara ser construído de forma cuidadosa e tornar-se uma fonte de lições tanto sobre o mundo corporativo quanto sobre a vida, e como ser uma mulher que não pede desculpas por ser quem é. Se a relação das duas começa em uma espécie de antagonismo, ela logo se transforma em admiração mútua: Cat é a maior fã de Supergirl, mas também sua maior crítica, e não pega leve com a heroína porque deseja, em primeiro lugar, que ela seja bem-sucedida, para o bem de National City e das meninas e mulheres que ela irá inspirar. Kara, por sua vez, vê na chefe a mulher que ela mesma deseja ser, uma mentora fiel a si mesma e alguém em quem ela pode se espelhar tanto como jornalista quanto como heroína.

Cat Grant é uma personagem dinâmica.e complexa, que dialoga de frente com as mulheres que trabalham em ambientes predominantemente masculinos e que não levam desaforo para casa. Sua trajetória no mundo dos negócios não é o foco em Supergirl, mas alguns episódios vislumbram a maneira como ela abriu seu caminho até o topo. De uma jornalista de fofocas e mãe solo, a dona de um império midiático, Cat precisou trabalhar duas vezes mais do que seus colegas homens para ser reconhecida e sempre soube que seus erros seriam multiplicado por mil; que suas chances eram numeradas, ao passo que o de seus colegas do sexo oposto, não. Cat está longe de ser perfeita ou uma chefe modelo (é preciso confessar que dificilmente alguém gostaria de trabalhar para ela), mas apesar de todos os seus erros, ela é uma personagem preciosa. Mesmo com o tempo de cena reduzido, suas aparições na segunda temporada continuam brilhantes e vêm para colocar ordem na casa — e em Kara. Cat Grant, afinal, mostra que uma mulher determinada pode ser até mais forte do que a própria garota de aço.

Texto escrito em parceria por Ana Luíza e Thay.

1 comentário

  1. Amei o texto!

    Muito bom e faz jus à incrível e fascinante personagem que é Cat Grant (amor incondicional por essa mulher, meu Deus)!

Fechado para novos comentários.