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Skyler White: “Protegendo essa família do homem que protege essa família”

Há dez anos, Breaking Bad chegava aos televisores norte-americanos por meio do canal AMC. De lá para cá muita coisa aconteceu durante as cinco temporadas da série, novos fãs apareceram, aqueles que estavam lá desde o começo se tornaram saudosos, mas uma coisa permaneceu: o ódio à Skyler White.

Faço parte do grupo de fãs que só veio a assistir a série inteirinha alguns anos após sua derradeira temporada ir ao ar, em 2013. Todos queriam saber como terminaria a história de Walter White (Bryan Cranston), um professor de química do ensino médio que descobriu um câncer de pulmão em estágio avançado e decidiu começar a fabricar e vender metanfetamina como forma de juntar dinheiro para sua família, provendo-os mesmo após sua morte. Mesmo uma fã tardia, ainda consegui perceber todo o ódio que os telespectadores da série dispensam à Skyler (Anna Gunn), esposa do protagonista, principalmente quando decidia acessar sites e fóruns de discussão de episódios.

“Vadia”, “puta”, “piranha”. Esses são apenas alguns dos adjetivos que os fãs usaram para se referir à Skyler durante todas as cinco temporadas, estivesse ela procurando entender os motivos que fizeram de seu marido um homem de mistérios ou contribuindo com suas atividades ilícitas. Em meio aos comentários com que me deparei, poucos eram aqueles que demonstravam algum tipo de simpatia — ou até mesmo empatia — com a situação de Skyler. Quando Breaking Bad tem início, para além das calças voadoras e cuecas brancas de gosto duvidoso, Skyler está grávida de sua segunda filha enquanto seu primogênito, Walter Júnior (RJ Mitte), é um adolescente de dezesseis anos com paralisia cerebral. Como se já não bastasse esse background, seu marido está com câncer em estágio avançado, tem agido de maneira cada vez mais estranha e a família não tem condições financeiras para pagar pelo tratamento de que ele precisa. Estando grávida, Skyler ainda precisa passar por uma montanha russa de mudanças hormonais, mas se mantém firme e forte por Walter e sua doença, disponível para o marido o tempo todo.

Skyler White

Enquanto muitos dos telespectadores acham que Skyler está sendo uma “vadia”, uma “puta” e uma “piranha” ao questionar Walter, querendo saber por onde ele anda quando fica ausente por longas horas e o que faz longe da família, tudo o que ela quer é entender. Skyler quer entender por que o marido some por dias inteiros e retorna com uma história mirabolante de perda de memória, quer saber por que ele tem um segundo celular do qual ela não tem o número, e por qual motivo esse mesmo marido continua agindo como se tudo estivesse na mais perfeita ordem quando o cenário não poderia ser mais diferente. Ela sabe que tem algo acontecendo, e mesmo que a doença de Walter necessite de cuidados, Skyler não vai deixar nada disso passar sem respostas.

Em Breaking Bad – O Livro Oficial lançado no Brasil pela DarkSide Books, David Thomson, organizador do encadernado, escreve um texto intitulado “Reavaliando Breaking Bad”, e traz à tona o caso Skyler White, uma personagem que se transformou em uma questão controversa quando os espectadores começaram a reagir a ela de maneira tão apaixonadamente odiosa. À época, foram organizadas até mesmo campanhas na internet promovendo o ódio e reivindicando ações punitivas contra Anna Gunn, visto que a consideravam agente responsável por uma personagem tão detestável e injusta com o pobre Walter, uma pessoa que só atrapalhava a vida do protagonista e sua jornada grandiosa. Mas sabemos que o problema é muito mais uma questão de misoginia do que qualquer outra coisa, e David Thompson diz isso com todas as letras em seu livro.

“Sempre houve uma corrente de projeção fantasiosa em filmes sobre crimes que convida os espectadores do sexo masculino a se identificarem com os personagens criminosos. Nós nos iludimos ao deixar de perceber o quanto das frustrações masculinas — sobre sermos fracassados sem glamour na vida — encontram liberação na dramatização da violência, tiroteios, abuso de mulheres e sonhos de autoridade.” 

Skyler White

Skyler teria sido menos odiada se ela fosse uma personagem passiva, que não questionasse, que não mostrasse sua força e resiliência? Ainda que seja uma mulher perfeitamente comum, Skyler é inteligente, atenciosa e afetuosa, e deseja simplesmente que ela e Walter possam compartilhar a vida, não somente o casamento. Ela quer que Walter possa conversar com ela, e quando suas mudanças de comportamento começam a incomodá-la, fazendo-a sentir que há algo de errado, ela decide que precisa ir à fundo para descobrir o que está acontecendo. A verdade é que, ainda que seja Skyler aquela escrevendo ficção, é Walter quem vive de mentiras. “Skyler é sua Lady Macbeth, e com quem ele conversa”, escreve David Thompson em outro momento em Breaking Bad – O Livro Oficial, e para ele é lamentável que os espectadores tenham se ofendido por aquilo que Skyler se tornou pelas próprias ações de Walter.

Em outro momento do livro, Vince Gilligan, criador de Breaking Bad, em conversa com David Thompson, se diz surpreso com a negatividade e ódio recebido por Skyler. Para ele, o ódio para com a personagem tem mais de uma explicação, mas parte disso tem a ver com a misoginia pura e simples, ainda que ele tenha conversado com mulheres que odiavam Skyler tanto quanto homens — o que reflete a sociedade patriarcal em que crescemos, onde sempre fomos ensinadas a caber em um determinado molde de subserviência ao poder masculino. Ainda que Skyler não detenha poder, visto que ela esteve em uma posição fundamentalmente impotente por um longo período, o jogo vira quando ela descobre as atividades ilícitas de Walter e decide que ele precisa sair de casa, pelo bem dela e proteção de seus filhos.

“(…) as pessoas parecem odiá-la por diferentes motivos. Algumas veem-na como se ela tivesse muito poder, interpondo-se entre Walt e os desejos dele. É estranho, mas quanto mais Walter White se desenvolvia na trama, menos empatia eu [Vince Gilligan] tinha por ele. Era uma ironia, considerando o quanto estive preocupado naqueles primeiros dias que ele fosse amável, mas, no final de tudo, honestamente, eu gostava bem menos dele do que o espectador médio de Breaking Bad.”

Skyler tem uma personalidade forte e é alguém que ama profundamente, uma pessoa que faria de tudo para manter a família unida, mas que precisa encarar escolhas difíceis no decorrer da série. Entregar ou não Walter para a polícia é uma dessas decisões, uma vez que, entregando-o, marcaria a ruptura da família para sempre. “Eu não vou te entregar à polícia. Eu não posso fazer isso com você. Mas você tem que sair da nossa casa.” Ainda que cometa alguns erros pelo caminho — todos precisamos concordar que I f*cked Ted não foi uma de suas decisões mais sábias —, Skyler é uma mulher que não desiste ou recua em frente às dificuldades, e que bate de frente com Walter quando sente que é seu dever fazê-lo. A audiência de Breaking Bad parece não apreciar — ou aceitar — uma personagem feminina que age de igual para igual com um homem; não abaixar a cabeça para Walter ou seguir passivamente suas instruções não a faz apenas uma das personagens mais interessantes da série, mas uma personagem verossímil, real.

Skyler não pediu para ser jogada no mundo que Walter escolheu abraçar quando decidiu fabricar metanfetamina. Suas intenções podem ter sido moralmente aceitáveis no início, mas Walter gostava de tudo aquilo — “Eu gostei. Eu era bom no que fazia. Eu estava vivo.”—, mas Skyler e seus filhos foram arremessados nesse mundo sem que lhes fosse perguntado qualquer coisa. Tudo o que Skyler desejava, quando, finalmente, Walter lhe contou sobre a doença, é que seu marido lutasse contra o câncer e fizesse o tratamento. Ela não queria perdê-lo, ainda que Walter não desejasse, em um primeiro momento, se submeter aos medicamentos e quimioterapia. E não podemos culpá-la por desejar que ele vivesse.

As constantes agressões à Skyler, ainda que uma personagem fictícia de uma série de televisão, diz muito mais sobre a cultura pop e a misoginia intrínseca em nossa sociedade do que sobre a trama da série em si ou as ações da própria personagem. Skyler White não é a primeira esposa de um protagonista de uma série de prestígio a receber um ódio exacerbado. Pense também em Betty Draper (January Jones), esposa de Don Draper (Jon Hamm) em Mad Men, apenas para citar um exemplo. Todos aqueles que odeiam as esposas, parecem se esquecer das pessoas horríveis que seus maridos são. Walter é uma pessoa terrível por baixo da superfície dócil de professor de química, assim como Don nunca foi um pai presente ou marido fiel. Odiar Skyler por conta da maneira como ela reage a Walter beira o absurdo. É importante frisar que, durante os anos de exibição da série, a personagem — mãe e esposa negligenciada — recebeu um ódio descomunal, que Walter White, traficante, assassino e manipulador, por outro lado, nunca recebeu.

Skyler White

“A misoginia e o preconceito contra personagens de ficção é um retrato de como a sociedade trata e considera as mulheres e, por sua vez, minorias”, e é isso que vemos quando uma personagem como Skyler recebe tanto ódio. Anna Gunn, a intérprete de Skyler em Breaking Bad, escreveu um artigo para o The New York Times em 2013 contando como se sentiu perplexa e temerosa com o ódio que tomou conta dos fóruns de discussão da série. Para a atriz, o fato de Walter ser o protagonista tornava mais fácil para os espectadores simpatizarem com ele, mesmo que sua moral seja ambígua e suas ações, imorais. Vince Gilligan desejava que Skyler fosse uma mulher de aço e que pudesse resistir a tudo o que viesse em sua direção, uma mulher que não entraria em colapso e sofreria em desespero quando seu mundo começasse a ruir. Para Anna Gunn, Vince Gilligan e todos os roteiristas que trabalharam em Breaking Bad fizeram de Skyler White uma personagem de camadas e tons de cinza, mas a audiência que acompanhava a série não a julgava pelo mesmo padrão que julgava Walter, fazendo dela o bode expiatório de tudo o que havia de pior em suas vidas.

“But as a human being, I’m concerned that so many people react to Skyler with such venom. Could it be that they can’t stand a woman who won’t suffer silently or ‘stand by her man’? That they despise her because she won’t back down or give up? Or because she is, in fact, Walter’s equal?” — Anna Gunn

“Mas, como um ser humano, estou preocupada que tantas pessoas reajam a Skyler com esse veneno. Será que eles não podem suportar ver uma mulher que não vai sofrer em silêncio ou ‘ficar ao lado de seu homem’? Que eles a desprezam porque ela não vai se retirar ou desistir? Ou porque ela é, de fato, igual de Walter?” — Anna Gunn

O que percebemos, e Anna Gunn também percebeu, é que o ódio destinado à Skyler tem muito mais a ver com a percepção que as pessoas têm de como mulheres e esposas devem ser do que com ela enquanto atriz ou sua personagem. Como Skyler não se enquadra no estereótipo esperado da esposa e dona de casa, ela se transformou em um tipo de parâmetro sobre como a sociedade reage diante de mulheres que quebram as expectativas. O ódio recebido pela personagem, as centenas de xingamentos que li sobre ela enquanto navegava em fóruns sobre a série, é a misoginia em seu estado mais puro. O que acontece aos personagens da ficção é apenas um reflexo do que acontece no mundo real, nas ruas de nossas cidades, nos ônibus e metrôs dos transportes coletivos. E isso precisa parar.

O exemplar de foi cedido por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


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13 comentários

  1. Ainda bem que eu não navego em fóruns de discussão na internet. rsrs Sempre admirei a Skyler e o que mais gostava nela era isso de ser tão similar às mulheres reais. E eu tbm gostei cada vez menos de Walter no decorrer da série.

  2. Ela pediu pra entrar naquele mundo sim !
    Pediu pra ajudar na contabilidade. Foi quando eles compraram o lava rapido pra lavar dinheiro.
    Depois se fez de demente dizendo que ele a obrigou a fazer aquilo.
    Pior personagem, desculpa.

    1. Não, Bianca, isso foi muito depois de Walter ter decidido, sozinho, começar a produzir e vender metanfetamina, lá na primeira temporada. O que veio depois é uma sucessão de escolhas difíceis, mas que ela fez pensando no melhor para seus filhos.
      Tá desculpada, haha, cada um pode ter sua opinião nesse sentido. 😉

    2. Eu também acho a personagem sem carisma, meio chata, mas a questão não é essa. Walter passou a série toda fazendo merda e não se viu 10% do ódio pra cima dele, enquanto que a Skyler não tinha nenhum desconto mesmo estando grávida, com marido doente que sai, fica fora um tempão e nem fala pra onde foi, não conversa com a esposa, aparece com mentiras esfarrapadas e com celular misterioso etc etc.

  3. Interessante, mas na minha opinião ela teve uma conotação justa por boa parte destas comunidades, a parte ofensiva fica por conta de um palavreado popular, ficou muito exposta a personagem e aí foi inevitável, tal julgamento massivamente também por próprias mulheres, então não se trata de justo ou injusto para os espectadores mas o erro sim acredito que foi o roteiro dado a ela a partir da terceira temporada de forma um pouco forçada ou excessiva, uma pena mas a série com os demais ingredientes deixa esta observação um detalhe menos importante.

  4. Estou assistindo esse seriado agora, no in´ício da quinta temporada. Breacking Bad mexe realmente com nossas emoções. Minha esposa é feminista na ascepção da palavra, confesso que tento ser também, mas esse seriado me fez perceber que falta muito pra isso acontecer! Discutimos muito ao longo dos capítulos, eu queria não odiá-la (confesso novamente!), mas não consigo, eu a odeio! Acho que iniciantemente a odeio pela traição e depois odeio porque via uma mulher hipócrita, que tira o dinheiro sujo do marido e entrega pro amante, com as quais ela canta feliz aniversario coim aquele biquinho sensual, enquanto no do marido nem lembra e faz questão de não lembrar. Quando lembro de alguém que era tão moralista, criticava o White por fumar maconha e depois fumava cigarro com bebê na barriga e um canceroso do lado. Odeio porque via uma mulher que não trabalhava enquanto o coitado enfrentava uma sala de aula e depois lavava carros o restante do dia; Posso (e provavelmente) estou errado, sei que há sim, um pouco de misoginia em meus pensamentos a respeito. O machismo não é algo fácil de combater, se eu que procuro pensar de maneira diferente da maioria já tenho esse ódio, imagina o restante dos pobres homens como eu!kkkk

    1. Moacir, com certeza a opinião de uma mulher e de um homem variam muito nesse sentido. Ao que os homens ofende muito a traição como simples ato sexual, para mim, como mulher, Skyler já estava sendo traída muito antes de trair Walt. Todas as mentiras dele, desaparecimentos, trata-la como se nao fizesse parte da vida dele, porque isso não é traição? Para mim é, e muito pior. Segundamente, a decisão de Skyler de trabalhar não era ilustrada na série, mas provavelmente era uma decisão de família assim como todas as famílias decidem as coisas juntos. Fora que isso não deveria ofender Walt, já que ele estava tao preocupado em “Ser o provedor”. Além disso, Skyler não deu o dinheiro que era de walt (aliás, nao entendi porque o dinheiro era do walt, sendo que o mesmo walt adorava falar milhares de vezes que só fazia tudo o que fazia pela família e o dinheiro era todo deles) para o seu “amante” porque quis e sim porque precisava se livrar do envolvimento na justiça, que muito provavelmente também incluiria walt em investigações e atrapalharia a família toda. A questão que talvez preocupe as mulheres, é o fato de que: walt mentiu deslavadamente inumeras vezes, matou pessoas, foi um PESSIMO marido. Sim, péssimo marido e péssimo pai. Não tinha pulso firme com o filho, obrigava a mae a ser a figura responsável e pagar de monstro todas as vezes, além de que nao a consultava em nenhuma decisao a respeito do filho (como comprar um carro ridiculamente caro), voltou a vender drogas após a morte do Gustavo Fring sabendo da opiniao da esposa a respeito disso e sem necessidade, já que o argumento de que “preciso juntar dinheiro para a família porque vou morrer” já nao cabia mais nessa situação. Walt nunca fez absolutamente NADA pela família. Foi um dos personagens masculinos mais egoístas, arrogantes e machistas que já vi em uma série. E NO FINAL DE TUDO ISSO, o que a população masculina enxerga: Skyler transou com outro, Skyler pegou o dinheiro “do walt” (que supostamente era da família). Preocupante.

  5. Skyler é uma mulher foda. White era muito inteligente, mas ele apenas queria poder e dinheiro. É isso do que se trata a série “breaking bad” que para mim sigifica “a sensação de poder corrompe”. A Skyler era uma mulher que fazia a conta óbvia, ou seja, o dinheiro não compensa nessas condições.

  6. Muito bom esse texto! É muito contraditória a minha relação com Skyler White. Os criadores assumem que mulheres também odiavam a personagem, mas isso tem muito mais a ver com o modo como ela foi posta e desenvolvida ali dentro da trama. Sempre impedindo o desenvolvimento do bandidão. Quer dizer, nas duas primeiras temporadas, o papel de Walter parece muito mais interessante, instigador, oponente, forte, enigmático. Honestamente, eu não esperava que homens se identificassem ou mostrassem qualquer amor por ela. A narrativa do Walt, que a gente fica doido para que se desenrole conforme ele vai ficando mais ‘badass’, tem a Skyler ali no meio. Skyler com seus questionamentos, seus ponderamentos, suas dúvidas, inseguranças, fraquezas e, principalmente, seus limites. Como o texto colocou, é justamente isso que faz ela incrível. Com o desenrolar de outras temporadas, foi dessa mulher que fui me aproximando, desenvolvendo nenhuma empatia pelo Walter. No final, eu não entendia como pude amar tanto esse cara nas primeiras temporadas. Skyler foi gigante em alguns momentos, mas em outros, sua compaixão por Walt foi longe demais. E quem pode julgar ela por isso, na real? Era alguém presa nas escolhas de outra pessoa, tentando fazer o que era melhor aos seus filhos.

  7. Procurei muito por um texto como esse, que expressasse o que senti quando soube do ódio pela personagem. Misoginia pura. Essa é a reflexão !

  8. Procurei muito por um texto como esse, que expressasse o que senti quando soube do ódio pela personagem. Misoginia pura. Essa é a reflexão !

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