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Blank Space, Garota Exemplar e a tradição literária

Ao longo do tempo, na tradição de contar histórias, muitos temas se repetiram e ainda se repetem. Histórias como a de Jesus, Frodo Bolseiro, Anakin Skywalker e Harry Potter, por exemplo, possuem muitas semelhanças entre si, pois todas as três se encaixam dentro do conceito de Jornada do Herói (ou Monomito), que segundo o antropólogo e criador do conceito, Joseph Campbell, possui três estágios principais: a separação, quando o herói é chamado à sua missão; a iniciação, quando ele se prepara para a aventura; e o retorno, quando o herói enfrenta a crise e a morte e volta de sua aventura. Mesmo desenvolvidas em torno do mesmo tema, o Novo Testamento, O Hobbit, Star Wars e Harry Potter não são obras iguais, tampouco cópias uma das outras. Apesar das quatro histórias encaixarem na mesma estrutura da Jornada do Herói, cada uma foi construída de certa maneira e segundo a estilística de seus autores.

A originalidade como conceito e característica qualitativa de obra artísticas e literárias não é algo que sempre existiu; pelo contrário, é um conceito relativamente novo. Por séculos, as obras mais aclamadas e importantes para a história da arte e da literatura eram aquelas que não escapavam de temas centrais, ou seja, aquelas que repetiam as mesmas narrativas e temáticas. Para os gregos antigos, a repetição era exatamente o resultado desejado. As peças, poemas e narrativas contadas já eram conhecidas por todos, e por isso eram apreciadas. Quando Sófocles escreveu Édipo Rei, por exemplo, ele não estava contando uma história nova e desconhecida, e sim um mito que fazia parte do imaginário de toda Grécia clássica.

A ideia de que para produzir algo bom é preciso criar algo novo é bem recente. É só na modernidade, mais especificamente no período romântico, no século XIX, que obras artísticas foram também qualificadas por sua originalidade e diferença entre as outras. É também nesse período que a noção de plágio como conhecemos começa a ser formada. Apesar de nos dias de hoje não aceitarmos muito bem a ideia de cópia e emulação — pelo menos não da mesma maneira que os gregos antigos aceitavam e prezavam —, ao longo da história da arte e da literatura alguns temas continuaram a se repetir, e é o que chamamos comumente de tropos e clichês.

Para o bem e para o mal, os tropos e clichês continuam compondo narrativas. Temas como amor à primeira vista, o triângulo amoroso, o herói que sofre por causa do fardo que carrega são exemplos disso. Muito já se falou sobre e ainda há muito para se falar, porque muitas vezes o uso desses recursos cai em estereótipos que reafirmam noções erradas ou mal interpretadas sobre pessoas, modos de vida, escolhas individuais, etc. Um bom exemplo do uso de clichês que são estereótipos negativos é o da melhor amiga não-branca ou até mesmo a melhor amiga gorda da protagonista, criadas apenas para a obra não ser criticada por falta de representatividade, mas sem o desenvolvimento e aprofundamento que outros personagens recebem.

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Outro uso desses clichês e tropos que muitas autoras e autores fazem é a subversão dos temas já conhecidos por todos. Muitas vezes esse procedimento tem função humorística, mas também pode servir para revelar e confirmar o esgotamento de fórmulas já muito utilizadas pela cultura pop. Obras como o livro Cidades de Papel, de John Green, subverte a personagem manic-pixie-dream-girl mostrando a busca frustrada do protagonista pela sua vizinha. A idealização de Quentin sobre Margo não era a real Margo e o final feliz que o protagonista esperava não é realizado. Seguindo a mesma linha, o livro Carry On, da Rainbow Rowell, que nasceu da fanfic escrita por sua personagem Cath em outra obra da autora, Fangirl, é uma leitura cômica e, ao mesmo tempo, inesperada das muitas histórias sobre personagens com a síndrome do “escolhido” e da Jornada do Herói. Simon nasceu carregando o peso de uma profecia e o destino do mundo dos Mages, mas isso não muda o fato de que ele ainda é apenas um menino adolescente cheio de questões e dúvidas sobre si mesmo e seu futuro.

Outro exemplo do uso de tropos e histórias conhecidas subvertidas é o livro O Mestre e Margarida, do escritor soviético Mikhail Bulgákov. O livro é uma releitura da história de Fausto, mais conhecida obra de Goethe, mas em vez do diabo Mefistófeles tentar um ambicioso jovem alemão, na obra de Bulgákov ele chega em Moscou colocando de cabeça para baixo a organização e o sistema político soviéticos. Bulgákov faz da sua prosa satírica uma maneira humorística de criticar a União Soviética e o governo stalinista.

De forma parecida, é esse o mesmo processo que ocorre em Garota Exemplar, de Gillian Flynn. No livro, Amy Dunne foi criada para ser a mulher perfeita, a manic-pixie-dream-girl dos sonhos de todos os homens, a garota legal que não liga para bobagens nem briga com o namorado, mas na verdade ela não é nada disso. Amy, que é uma mulher muito inteligente e com tendências para ser uma grande gênia do mal, cria a ilusão de ser o clichê que encanta seu marido, Nick, até o ponto que os dois se cansam da encenação. Nick começa a trair sua esposa e Amy começa a planejar sua vingança. A autora se apropria do clichê da personagem feminina perfeita, aquela que está sempre pronta para ajudar seu par romântico sem questionar nada, ser feliz ao seu lado e sem precisar de qualquer outro aprofundamento de personalidade e caráter, para torná-la uma mulher que toma a voz da própria narrativa.

A canção “Blank Space”, da Taylor Swift, é construída de maneira muito semelhante. Apesar de não ser uma obra propriamente literária, canções estiveram por séculos lado a lado de obras ficcionais. Na Idade Média, havia os trovadores que em suas canções contavam histórias, além das cantigas de amor, amigo, maldizer e escárnio, que oficialmente fazem parte da tradição literária. Após Bob Dylan ter ganho o prêmio Nobel da literatura, é difícil afastar as canções de outras obras ficcionais literárias. De volta à canção, Taylor Swift canta sobre uma mulher que, assim como Amy, toma as rédeas de sua própria narrativa e tem, em suas mãos, o total controle de seus parceiros românticos.

“New money, suit and tie
I can read you like a magazine”

“Novo rico, terno e gravata
Eu posso lê-lo como uma revista”

O eu-lírico é uma mulher que conhece muito bem o tipo de pessoas com quem ela se relaciona.

“Got a long list of ex-lovers
They’ll tell you I’m insane
‘Cause you know I love the players
And you love the game”

“Tenho uma longa lista de ex-amantes
Eles te dizem que sou louca
Porque você sabe que eu amo os jogadores
E você ama o jogo”

Assim como outras mulheres poderosas que tomam pelas próprias mãos o controle de suas vidas, tanto o eu-lírico da canção como Amy são chamadas de loucas. Porém, ao invés de contestarem esse lugar, elas tomam posse dele e o subvertem.

O gaslighting, ou colocar a mulher no papel da louca para desvalidar sua voz, é uma forma de abuso psicológico muito usada contra mulheres pela nossa sociedade machista e patriarcal. Histórias em que homens usam do gaslighting para tirar as mulheres do controle são muito comuns, tanto na ficção quanto na realidade. Contudo, em Garota Exemplar e em “Blank Space”, as mulheres “loucas” não mais perdem o controle de suas narrativas, nem de suas vozes, pois a história que normalmente é contada por homens, é, nesses dois casos, contada por mulheres. Dessa maneira, em vez de se tornarem mais uma vez vítimas, essas mulheres se tornam as predadoras e protagonistas de suas histórias, subvertendo o clichê em que foram colocadas.

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No livro, até a metade da história só conhecemos Amy através de seu marido, Nick, e de seu diário, que é usado como prova para incriminar o marido de seu desaparecimento e suposto homicídio. Até a metade do livro somos levados a acreditar que Amy é a vítima. É vítima de seu marido, é vítima da crise econômica, é vítima de seus pais que a criaram para ser perfeita, é vítima de sua história. Contudo, Amy pode ser qualquer coisa, menos vítima. Amy planejou com muito cuidado e dedicação o seu sumiço, escreveu por meses em seu diário suas lembranças modificadas de acordo com a mensagem que queria imortalizar: de que era a vítima. A história inventada por Amy é a história de muitas mulheres reais e ficcionais, mas essa não é a história contada em Garota Exemplar.

Quando o leitor descobre a verdadeira Amy — a pessoa, e não a voz forjada no diário —, seu plano é revelado. Para se vingar de seu marido que não seguiu com a narrativa perfeita que ela havia planejado antes, Amy monta a cena de seu suposto assassinato e some. Apesar de genial, seu plano não corre como pensado, mas como uma mulher que faz questão de construir a própria história, ao final ela consegue se aliar à narrativa que mais lhe convinha. Amy é a personificação da transgressão do clichê, pois constrói meticulosamente a história de sua vida como se sua vida fosse um livro com ela própria de narradora.

O eu-lírico de “Blank Space” passa por um processo semelhante:

“Find out what you want
Be that girl for a month
Wait the worst is yet to come, oh no”

“Descobrir o que você quer
Ser essa garota por um mês
Espere que o pior ainda está por vir, oh não”

Assim como Amy, o eu-lírico de “Blank Space” planeja a conquista do par romântico sendo aquilo que é o desejado e esperado que ela seja. Mas o ideal não é o real. A realidade escondida revela uma mulher vista como desesperada, falsa e louca, mas que consegue tomar o controle da situação e repetir o mesmo processo novamente.

“Boys only want love if it’s torture
Don’t say I didn’t say I didn’t warn ya”

“Meninos só querem amor se for tortura
Não diga que eu não te avisei”

A canção de Taylor Swift e o livro Garota Exemplar não mostram exemplos a serem seguidos, tampouco são manifestos feministas, mas são obras que utilizam de recursos comuns à tradição literária e os colocam de maneiras diferentes e não tão comuns assim. Condenar o uso do clichê sem atentar para a construção e o conteúdo da obra é uma atitude dura demais, ainda mais com produções contemporâneas, que tendem a re-utilizar fórmulas e mecanismos já conhecidos, mas de outros jeitos. Só porque a história já foi contada muitas vezes não quer dizer que ela é ruim, pois dependendo de quem a conta, a história ainda pode surpreender.

Histórias sobre mulheres loucas já foram contadas e recontadas por muitos homens, por que não ouvir essas histórias com novas nuances da boca de mulheres?

2 comentários

  1. Impossível não amar os textos deste site, sempre de uma qualidade incomparável. Eu tinha perdido o tesão de ler Garota Exemplar, mas depois disso preciso tirar a prova.

    p.s.: e não estamos todas tentando superar a morte do Sirius?

    Att.,
    Eduarda Henker

  2. AMEI! Acho a letra de Blank Space genial, assim como o clipe, pois a Taylor conseguiu ironizar o papel que a mídia e a sociedade criou para ela, tornando tudo “realidade”, mas a colocando como protagonista da história.

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