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Gaston: quando a redenção não é possível

A versão live-action de A Bela e a Fera é muito parecida com a animação de 1991, o que já era possível observar nos trailers. Acompanhei muita gente falar mal disso, mas não achei nenhum grande problema. Aliás, a semelhança foi o elemento mais explorado durante a divulgação do filme; todas as cenas liberadas, falas e músicas eram quase — se não totalmente — iguais à animação. A semelhança não incomoda (não aos fãs da história) porque o filme conta uma boa história, e boas histórias sempre valem a pena serem contadas. Contudo, a nova versão apresenta algumas diferenças que, apesar de sutis, conseguem diferenciar o filme da animação.

Atenção: este texto contém spoilers!

Numa entrevista, Luke Evans, que interpreta Gaston no filme, é questionado se seu personagem era mesmo um vilão ou apenas mal-compreendido. E ele responde, assertivo: “não, ele é o vilão”. Se na animação há certa ambiguidade quanto ao caráter de Gaston, o live-action não deixa dúvidas. Ironicamente, ao mesmo tempo que o personagem se torna mais vilanesco e maldoso, ele também parece mais real. não só porque é interpretado por uma pessoa e não seja mais um desenho, mas porque suas falas e atitudes são bem comuns na vida real e representam muito do que há de errado com a sociedade.

Gaston

A grande lição de A Bela e a Fera trata é sobre não julgar pela aparência e que o amor não surge do nada, mas é algo construído com o tempo. Normalmente relacionamos as duas lições à Fera (Dan Stevens), ou melhor, o príncipe que é transformado em Fera, mas elas — principalmente a primeira — também se aplicam a Gaston.

A Fera, apesar de sua aparência e temperamento assustadores, ganha mais desenvolvimento sobre seu passado e no tempo que passa ao lado de Bela, o que a deixa menos animalesca e mais humana. O príncipe — que desde a animação permanece sem nome — revela que perdeu a mãe ainda criança e foi criado pelo pai abusivo para se tornar um jovem egoísta e superficial que é amaldiçoado anos depois. Bela (Emma Watson) também ganha mais camadas quando é explicado o que aconteceu com sua mãe; ela morreu em Paris durante o surto de peste bubônica e seu pai fugiu da doença para o interior da França com Bela ainda bebê. São pequenos detalhes acrescentados para deixar o filme mais próximo ao passado histórico e também para humanizar Fera e estreitar seus laços com Bela.

A primeira vez que encontramos Gaston ele está no meio da cidade com seu amigo, LeFou (Josh Gad), dizendo como Bela é a garota mais bonita da vila, mas também diferente de todas as mulheres que ele conhece, apenas por ela não querer nada com ele. Para Gaston, a rejeição de bela às suas investidas o incentiva a continuar tentando ao invés de respeitar os sentimentos — ou a falta deles — da moça. Isso soa um tanto familiar, não? A convenção social diz que, quando a mulher diz não ao homem, ela está preservando sua feminilidade e reputação. Não é considerado que mulheres possam dizer não porque de fato não querem o que é oferecido a elas.

Ao contrário da animação, Maurice (Kevin Kline), pai de Bela, não é visto como louco pela população da vila desde o início. Sua reputação só muda quando ele volta do castelo da Fera para tenta resgatar a filha, que se tornou prisioneira em seu lugar. É uma mudança significativa porque, mais tarde, tentando impressionar o pai da mulher que deseja, Gaston aceita ir com Maurice em busca do castelo, mas eles não o encontram. Maurice percebe o interesse de Gaston em Bela e reafirma que a filha nunca se casaria com ele. Para se vingar, Gaston decide abandonar Maurice desacordado e amarrado ao pé de uma árvore, à vista e disposição de qualquer animal selvagem. Para ele, Maurice é apenas um obstáculo que o separa de Bela. Na animação, essa crueldade gratuita só é mostrada contra a Fera; já no live-action, ela é parte da construção do personagem, uma mudança significativa.

Gaston

Maurice não morre, ao contrário do que Gaston pensa, pois é resgatado por Agathe (Hatie Morahan), a pedinte da cidade. Ele retorna a cidade para mostrar às pessoas a verdadeira face de Gaston, mas não consegue convencer ninguém — além de LeFou, que estava com eles na floresta. Maurice é visto como louco e Gaston providencia sua internação. É nesse momento que Bela retorna à vila para salvar o pai e provar a existência da Fera, mas, como na animação, seu plano dá errado e só serve para incitar Gaston numa caça às bruxas — ou, melhor, à Fera. Gaston parte com o resto dos habitantes para o castelo e deixa Bela e seu pai presos para serem internados como loucos. Inconformados com a rejeição, Gaston decide chamar Bela de louca ao invés de aceitar seus sentimentos. E, novamente, Gaston se prova um mal menos alegórico, e cada vez mais real.

Gaslighting é o nome em inglês para quando mulheres têm seus sentimentos e identidades apagados por homens ao serem chamadas de loucas. Ser “louca”, nesse caso, é não ter controle sobre sua racionalidade e, portanto, dizer mentiras. Bela é chamada de louca quando diz que a Fera não machucaria ninguém. Como pode um animal tão monstruoso ser tão humano? Bela é chamada de louca quando percebe que a monstruosidade não está na aparência da Fera, mas no interior de Gaston.

Bela e Maurice conseguem escapar e a moça parte em busca da Fera para protegê-la de Gaston. No castelo, os habitantes, transformados em utensílios domésticos pela feiticeira, se defendem dos ataques com bastante sucesso. É nesse momento que Gaston mostra sua verdadeira face não só para os inimigos, mas também para seu amigo, LeFou, que quase morre para protegê-lo, e ainda assim é traído. LeFou, então, canta sua fala mais importante: “creio que o monstro errado foi liberto”.

Gaston

Por ser vaidoso e julgar pelas aparências, o príncipe é amaldiçoado e transformado em Fera. Mas para Gaston, o verdadeiro vilão do filme, não há maldições, feitiços ou lições para serem aprendidas. Sua aparência continua a mesma; ele é um homem atraente do começo ao fim, mas a beleza não significa nada além disso: aparência. Ao final, os erros do príncipe são perdoados e a feiticeira que o amaldiçoou devolve sua forma humana, pois o príncipe, agora, só era um monstro externamente. Para Gaston, porém, não há redenção possível; só resta a sua morte. Pode ser um conto de fadas, mas não deixa de ser cruel. Cego por suas ambições, Gaston morre tentando matar a Fera. Sua morte é causada por ele mesmo e mais ninguém.

Para uma história sem bruxas e madrastas malvadas e alegóricas, a vilania é muito bem representada. Em A Bela e a Fera, a feiticeira até está presente, mas não importa se ela é boa ou má, o antagonismo é todo de Gaston.

A Bela e a Fera recebeu 2 indicações ao Oscar, na categorias de Melhor Figurino e Melhor Produção.

2 comentários

  1. Também reparei nessas nuances do Gaston e que são bem visíveis no filme. Elas podem passar despercebidas por alguns, mas são extremamente importantes. É um retrato real de muitas pessoas com o qual temos que lidar no nosso cotidiano. O cara que não aceita o seu “não” e te chama de louca, o outro que só faz merda e mesmo assim tem as suas ações justificadas pela beleza… Eu gostei muito do filme, em todos os seus pontos. Acho que foi uma representação importante, ainda mais porque muitas crianças vao assistir, e eu espero que isso influencia-as a enxergar as coisas de uma forma diferente!

    1. sim! penso o mesmo! achei muito importante também quando ele deixa o lefou e não se importa em defender o amigo porque mostra mesmo que o gaston é uma péssima pessoa com todo mundo que não seja ele.

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