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Semana dos Livros Banidos: libertem Persépolis

“Essa é a grande história. Marjane herdou tudo isso, e fez o primeiro álbum de história em quadrinhos iraniano.” É essa frase que encerra a introdução de Persépolis, uma espécie de prefácio onde David B. se encarrega de resumir em três páginas a história do povo persa do ano 642, que marca as invasões árabes, até 1980, quando Marjane Satrapi foi obrigada a usar véu na escola pela primeira vez, um reflexo da Revolução Islâmica que começou no Irã em 1979.

Não é nenhum equívoco dizer que Persépolis é uma história em quadrinhos autobiográfica: ao longo dos quatro volumes lançados numa edição única e completa pela Quadrinhos da Cia, selo de quadrinhos da Companhia das Letras, acompanhamos Marjane Satrapi dos 10 aos 24 anos de idade. Ao mesmo tempo, também não é errado dizer que Persépolis é uma HQ sobre o Irã. “Marjane herdou tudo isso”, nos lembra a introdução, uma mensagem que fica ainda mais forte se voltamos a ela ao final do livro, porque não dá pra dissociar a vida da autora de tudo que aconteceu no seu país.

Não é uma história completa e esgotada, claro. Em entrevista a Emma WatsonPersépolis foi um dos títulos selecionados pelo Our Shared Shelf, clube do livro feminista organizado pela atriz e sediado no Goodreads —, Marjane diz que escreve não do ponto de vista político ou histórico, mas do pessoal, que é o único que ela conhece e o único que a gente pode realmente se identificar.

“Não tinha nenhum outro jeito para escrever minha história. Não poderia de repente dizer ‘ah, essa é uma análise do que aconteceu nos anos 70, 80 e 90 no Irã’ porque não sou historiadora e não sou política. Sou uma pessoa que nasceu em determinado lugar, em determinada época, e posso estar incerta sobre tudo, mas não tenho dúvida sobre o que vivi. Isso eu conheço. E foi muito pessoal — uma coisa bem pequena, o que é importante. Quando você fala sobre nação, o que é uma nação? Quero dizer, todos os britânicos são iguais? Claro que não. Tem pessoas legais — como você. Tem os hooligans. Tem todo o tipo de pessoa. Então uma pessoa — o leitor — pode se identificar; não dá pra se identificar com uma nação. (…) Eu só conheço o que eu vivi. Então tento entender e descrever minha experiência, o que é importante porque as pessoas sabem tão pouco. Elas veem imagens na TV e pensam que é assim que as coisas são.” (tradução nossa)

Quantas aulas seu professor de História dedicou à Revolução Islâmica? A guerra entre o Irã e o Iraque — alguém já parou para falar sobre eles na sua época de escola ou o cronograma apenas seguiu o roteiro clássico da Guerra do Golfo como uma história sobre petróleo, sem se importar com as pessoas envolvidas? Quando você pensa sobre o Irã, qual a imagem que vem na sua cabeça? O que o sistema educacional e a mídia ocidental te ensinaram sobre isso?

Certamente algo diferente da figura de uma jovem Marjane que ainda criança lia quadrinhos sobre Marx e no início da adolescência encarava o mercado negro iraniano em tempos de guerra para comprar fitas da Kim Wilde e do Iron Maiden, correndo o risco de ser condenada a chibatadas caso fosse pega. A história pessoal do Irã que conhecemos em Persépolis fala sobre guerra, sobre mortes, sobre perseguição política e sobre ausência de liberdades individuais, mas é também a história de amadurecimento de uma garota em meio a tudo isso. Marjane herdou toda a história de seu povo, mas sua narrativa pessoal não se resume a isso: ela tem uma religiosidade própria — e dúvidas quanto a ela —, gosta de música, punk rock, maquiagem, frequenta festas, conversa sobre garotos.

Persépolis

Muito disso vem da posição privilegiada que ocupava na sociedade — seus pais faziam parte da esquerda secular iraniana, com boa condição financeira e ideias liberais —, numa família que valorizava a educação e a independência e encorajava Marjane a ser dona de suas ideias e ideais, adicionando um novo ponto de vista sobre a história do país. Essa perspectiva foge daquela perigosa narrativa única (e trágica) sobre o famigerado outro, contra a qual nos alerta Chimamanda Ngozi-Adichie em O Perigo de uma História Única. Mesmo durante a guerra, a família de Marjane dava festas regulares com música e bebida alcoólica — proibidos pelos chamados Guardiões da Revolução — e contrabandeava pôsteres de música no forro de casacos para decorar o quarto da filha adolescente. Eles frequentavam manifestações e faziam parte da resistência, mas a rebeldia também mora nesses detalhes menores. Não deixar a guerra ser o centro da sua vida é uma pequena revolução.

A repressão, contudo, era real e impiedosa. Aos 14 anos, Marjane foi mandada para a Áustria, para viver sua adolescência num contexto de liberdade e segurança. Sua família se preocupava com as consequências de seus atos de rebeldia — ela era do tipo que chamava a professora de mentirosa e dizia sem medo verdades a respeito da realidade distorcida que lhe era ensinada na escola. No exílio, ela nunca realmente conseguiu se encaixar, ainda que tivesse tentado muito, a ponto de abandonar a integridade que antes de partir ela prometera a sua avó que preservaria. Marjane começou a usar e traficar drogas e depois do fim de um relacionamento passou três meses morando na rua, em pleno inverno austríaco.

“Eu vivi uma revolução que me fez perder parte da minha família, sobrevivi a uma guerra que me afastou dos meus pais e do meu país e foi uma banal história de amor que quase me levou embora”, ela escreve. Esse tipo de nuance é a coisa mais fascinante sobre Persépolis, porque reveste a personagem de complexidade e, por isso, de humanidade. Todos na história são ambíguos, cheios das próprias contradições, e a autora não esconde as partes menos honradas de sua trajetória. Não é assim a vida? Isso torna a mensagem da HQ muito mais forte e impactante, transformando-a no tipo de material ideal para ser estudado nas escolas, principalmente as ocidentais, público que a autora mira desde o início.

Persépolis

Apesar disso, ou talvez por causa disso, Persépolis figura frequentemente na lista dos livros mais banidos e questionados em escolas e bibliotecas dentro dos Estados Unidos. Um estudo de caso aponta as justificativas mais comuns: linguagem gráfica e imagens inapropriadas para uso geral; linguagem vulgar e cenas de tortura; islamofobia.

Em 2013, por exemplo, a HQ de Marjane Satrapi — reconhecida como um dos melhores livros de 2007 por publicações como Time Magazine e New York Times — foi simplesmente banida das escolas de Chicago. À época, o Chicago Public Schools, órgão que administra as escolas públicas da cidade, disse, apenas, que acreditava que o conteúdo presente em Persépolis deveria ser direcionado a alunos mais velhos e, portanto, recomendou a remoção dos livros dos alunos do primário até a sétima série devido ao conteúdo não “apropriado” de suas imagens. A autora considerou a ação ditatorial e pela internet, naquele ano, deu início ao movimento #FreePersepolis (#LibertemPersépolis, em português) enquanto a American Library Association (ALA) considerou a ação uma violação ao direito à informação.

Ver sua obra banida ou proibida de circular não é novidade para Marjane, já que em seu próprio país o livro encontra-se na lista de restrições devido à forte crítica política. Não há na HQ nenhuma imagem forte ou explícita, nada que justifique a retirada do livro do acesso das crianças — pelo menos não há nenhuma imagem que as crianças já não tenham visto em estudos sobre o Holocausto, as Grandes Guerras Mundiais, ou mesmo em produções de cinema ou na própria internet. Ainda que, talvez, elas não possam compreender por completo as críticas tecidas por Marjane durante a história, nada impede que o livro seja revisitado e relido em diferentes épocas da vida, contribuindo para a construção de um senso crítico afiado e um entendimento maior a respeito da história de outro país. Por conta da remoção dos livros em Chicago, outras escolas seguiram a deixa e Persépolis foi, em 2014, o segundo livro mais confrontado no ano de acordo com a American Library Association.

Persépolis

Banned Books Week

Criada em 1982, nos Estados Unidos, pela ativista Judith Krug em conjunto com o First Amendment, a Banned Books Week — ou, em português, Semana dos Livros Banidos, tem por objetivo celebrar a liberdade e o direito de ler ao chamar atenção para títulos proibidos de circular em escolas, bibliotecas e livrarias norte-americanas pelos mais diversos motivos. A semana de conscientização ocorre normalmente na última semana do mês de setembro e esse ano, convidadas pela Revista Polén, estamos abordando o tema por aqui também.

Atualmente a Banned Books Week (BBW) é apoiada por diversas entidades norte-americanas relacionadas ao mundo dos livros, entre elas a American Library Association (ALA), American Booksellers Foundation for Free Expression (ABFFE), American Society of Journalists and Authors e Library of Congress. A BBW destaca a importância do livre acesso a informação e a liberdade de buscar e expressar novas ideias, mesmo aquelas consideradas menos ortodoxas ou impopulares. As atividades da BBW também têm por objetivo remover o acesso restrito ao livros chamando atenção para os danos que a censura desregrada pode causar.

Isso nos mostra o alcance desse movimento e como ele é, ainda em 2016, tão importante. É curioso pensar que em pleno século XXI livros são banidos por seus conteúdos, tirados de circulação por suas tramas e personagens considerados inadequados. De acordo com dados da ALA, só no ano de 2012 mais de 460 livros receberam notificações e pedidos de proibição e, desde o início da BBW, em 1982, mais de 11 mil livros foram notificados por possuírem conteúdos considerados impróprios como sexo, profanação e racismo. Mesmo que, em teoria, alguns desses banimentos tenham por objetivo maior proteger crianças e jovens de um conteúdo “inadequado”, a censura desse tipo de material acaba por reduzir o direito à livre escolha.

A lista com os livros de 2016 ainda não foi liberada pela American Library Association, mas a lista de 2015 contava com títulos como Quem é Você, Alasca?, de John Green, por se utilizar de linguagem ofensiva e ser sexualmente explícito, Dois Garotos se Beijando, de David Levithan, por falar de homossexualidade, e até mesmo um livro infantil, Nasreen’s Secret School: A True Story from Afghanistan, da autora Jeanette Winter, por ter um ponto de vista religioso. Como é possível notar, os motivos pelos quais um livro pode ser banido são os mais variados: conteúdo sexualmente explícito, linguagem ofensiva, personagens homossexuais, ponto de vista religioso ou político, violência. Em outros anos, livros como Crepúsculo, de Stephenie Meyer, O Apanhador do Campo de Centeio, de J. D. Salinger, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, diversos livros da série Harry Potter, de J.K.Rowling, e Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, foram listados pelos mais diferentes — e até, contraditórios — motivos.

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Dentro da temática dessa semana, decidimos falar sobre Persépolis por este ser um livro de grande influência cultural, além de ter sido inteiramente escrito e desenhado por uma mulher. O nome de Marjane Satrapi tem ficado cada vez mais conhecido pela audácia que teve ao contar a sua história de vida essencialmente ligada ao país onde nasceu, e por consequência difundir uma visão mais ampla da influência dos conflitos da Revolução Iraniana nela como cidadã. O que acaba sendo uma experiência que, para muitos, foge daquilo que concebemos só pelo que nos é ensinado. Se o diferencial de Marjane foi ter sido instruída e informada desde pequena, muito se deve ao diálogo que tinha com seus pais e o acesso à informação pelos livros, muitos deles proibidos na época. Curiosamente, o seu próprio se tornou parte dessa lista. Então pensemos: o que essa metalinguagem nos diz?

“Então percebi que não sabia nada. E li todos os livros que pude.”

Texto escrito em parceria por Anna VitóriaThay e Yuu


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