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As mulheres de The Musketeers

Todos sabemos que a BBC adora adaptar para as telinhas livros clássicos, então não é surpresa nenhuma que a emissora tenha produzido uma série sobre Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas. Lançada em 2014, The Musketeers foi inicialmente pensada para preencher o vazio da grade da emissora entre as temporadas de Doctor Who, mas devido ao seu sucesso foi renovada para uma segunda temporada. Atualmente a série já foi finalizada com apenas três temporadas que totalizam trinta episódios.

A trama é construída em torno dos três — e depois quatro — mosqueteiros, Athos (Tom Burke), Porthos (Howard Charles), Aramis (Santiago Cabrera) e o novato, D’artagnan (Luke Pasqualino) que lutam pelos interesses do Rei Luís XIII (Ryan Gage). Na Paris de 1630, temos um cenário rico e propício para intrigas, conspirações e jogos de poder. O rei é uma mera peça no tabuleiro e quem faz todas as jogadas é o Cardeal Armand Richelieu (Peter Capaldi), com quem os mosqueteiros não se dão lá muito bem.

Acontece que The Musketeers, apesar de ter quatro homens como personagens principais e muitos mais como coadjuvantes, também é uma série que se destaca pelas personagens femininas — seja em uma boa construção de suas personagens ou por alguns deslizes cometidos no meio do caminho.

A primeira mulher a cruzar o caminho dos mosqueteiros é Constance Bonacieux (Tamla Kari). Uma dona de casa e esposa exemplar, que ajuda o marido a cuidar dos negócios. No entanto, a partir do momento em que sua história se entrelaça a de D’artagnan, Constance é aprofundada e percebemos que há muito mais do que belos vestidos e sorrisos de sua parte. A sede por aventuras, por ser incluída nas tramas, logo fica clara, principalmente quando aceita ajudar os mosqueteiros em uma emboscada, se passando por uma prostituta.

Par romântico de D’artagnan, Constance evoluiu ao longo dos episódios, indo muito além do interesse do mocinho. Sua voz também é ouvida e ela, por vezes, vai representar a situação difícil e excludente que mulheres viviam na época. The Musketeers faz com que Constance cresça e mostre sua força e coragem, além do jeito peculiar de lidar com as dificuldades que surgem em seu caminho apenas por ser mulher. Para muitos, ela se tornou um ícone, com frases que transmitem a sede das mulheres por ocuparem espaços e papéis mais abrangentes, sem restrições, julgamentos e preconceitos. Mesmo que alguns momentos de sua jornada tenham sido tortuosos e alguns caminhos tomados pelo roteiro, questionáveis, a personagem chega a terceira temporada como uma referência para todos ao seu redor, respeitada e estimada pela sua garra. Podemos ver que Constance está confortável em sua pele e feliz com suas diversas faces — seja a de uma pessoa cheia de sentimentos, medos e preocupações ou a de uma pessoa com força de vontade ímpar, leal e que não hesita em ir para a luta (literalmente).

Constance é uma mulher que não se deixará abater pelas ameaças de um homem e puxará a espada para lutar de igual para igual. No entanto, preciso dizer que, apesar de a terceira temporada mostrar uma Constance badass em um posto de destaque, os roteiristas parecem ter reduzido suas aparições à conveniência para resolver problemas ou encaminhar o enredo.

Outra mulher bem construída da série, que pode não parecer em um primeiro momento, é a Rainha Anne (Alexandra Dowling). Casada com o Rei Luis XIII, Anne é cheia de nuances e camadas. Odiada na corte e em toda a França por ser espanhola (de forma resumida, os dois países se encontravam em meio a uma rixa na época), a rainha é apenas o “pano de fundo” para muitas cenas da primeira temporada. Ela está sempre lá para ser uma esposa e rainha compreensiva, que tenta agradar a todos e sempre fazer a vontade do rei, enquanto sofre pressão para gerar o herdeiro que ainda não havia sido capaz de prover. Com o decorrer da trama, porém, a personagem cresce e aparecer, principalmente quando se envolve com o mosqueteiro Aramis. Esse é um ponto delicado da história porque Anne está presa a sua condição de rainha — e de mulher, tendo suas decisões limitadas por ser quem é — e não pode assumir seus sentimentos por Aramis, tendo de permanecer ao lado de um rei que que jamais será capaz de amar.

A rainha é uma das personagens mais resilientes mostradas em The Musketeers. Sua força é silenciosa, sua coragem não é escancarada. Uma das inúmeras vezes em que a desigualdade entre homens e mulheres perante a sociedade pode ser percebida é durante a trama de traição de Anna e do rei. Enquanto ela carrega consigo a culpa por ter sido fraca e precisa manter segredo o relacionamento porque corre o risco de ir para a forca, o rei exibe sua amante em toda a corte, inclusive esfregando na cara da própria Anne o quanto a outra mulher é melhor do que ela. E Anne suporta, com a cabeça erguida, mesmo que machucada.

Na segunda temporada, a história de Anne ganha mais holofotes devido ao seu envolvimento com o vilão da trama, o Conde de Rochefort (Marc Warren). Um homem louco e abusivo que acredita que os dois estão predestinados, uma vez que cresceram juntos e são, na visão dele, perfeitos um para o outro. Anne sofre abusos emocionais e físicos, mas ninguém acredita quando ela diz que Rochefort tentou abusá-la sexualmente — e a rainha permanece de pé, e se apoia na amizade com Constance, não se permitindo abater, pois sabe que a França depende dela. Uma personagem que coloca seu bem-estar em segundo plano pelo bem de seu país.

Muitas vezes reservada às sombras, uma das mulheres mais importantes da trama é Milady de Winter (Maimie McCoy). Com um passado conturbado ligado a Athos, Milady é um contraponto às outras mulheres abordadas: assassina, ladra e manipuladora, ela usa de sua beleza para seduzir homens tolos o suficiente para acreditarem em seu desespero e fragilidade. Mas sua representação é feita de mais erros do que acertos. The Musketeers parece não saber balancear seu lado sombrio com o que restava de bom na personagem. Pintada como vilã na primeira temporada, ela passa a ajudar os mosqueteiros na segunda, até desaparecer por completo até a metade da terceira apenas para protagonizar uma trama ao lado de Athos em que ambos parecem não conseguir se livrar do relacionamento abusivo que construíram.

É muito fácil odiá-la, uma vez que a história é contada pelo ponto de vista dos mosqueteiros, incluindo Athos, e os acontecimentos a pintam como se ela fosse a única culpada por toda a desgraça em sua vida. O que descobrimos, na verdade, é que Milady é uma vítima das circunstâncias, das aparências, do preconceito e de sua condição de mulher. Mais uma vez, a série coloca uma mulher que relata ter sofrido abuso sexual, sendo desacreditada, de modo que a situação seja construída de tal forma que não resta outra opção senão a culpabilização da vítima. Milady representa uma das várias faces que as mulheres podem assumir, fugindo do clichê das mocinhas, mas caminhando na corda bamba entre a mulher fatal e vingadora (embora seja ótimo ver em cena uma mulher que encurrala um homem e fala calmamente os métodos que pensa utilizar para matá-lo).

Além das três principais mulheres da trama, The Musketeers apresenta, em sua última temporada, Sylvie (Thalissa Teixeira), negra e refugiada, que lidera uma das comunidades de refugiados em Paris. Apesar de inicialmente ser inserida como par romântico de Athos, Sylvie consegue se desvencilhar da sombra do mosqueteiro e traçar uma jornada própria. Inteligente, acostumada com as dificuldades diárias de ser uma mulher pobre e negra em uma sociedade elitizada, é necessário muito para abatê-la. Sylvie é uma líder natural e luta com unhas e dentes pelo seu povo. Visionária, também representa o sentimento da necessidade de mudanças e revolução, que viria a ganhar lugar mais tarde com a Revolução Francesa.

Com participação menor, também não podemos esquecer da Condessa Ninon De Larroque (Annabelle Wallis), uma mulher que, do alto de todos os seus privilégios, decide usar de seu poder e influência para proporcionar o ensino a outras mulheres. Feminista assumida, Ninon tem ideias revolucionárias para a época e seus privilégios não são capazes de evitar o julgamento pelo qual é submetida (tanto pela Justiça quanto pela sociedade). A personagem, no entanto, não abandona suas convicções, permanecendo firme até o fim, mesmo quando isso significa abdicar de sua posição.

Outros episódios também fazem uma representação lúcida das mulheres da época. Sempre presentes, ainda que em segundo plano, elas surpreendem pela força e determinação, e pelas atitudes desafiadoras. Uma das tramas mais interessantes e acertadas é a do convento em que os mosqueteiros se abrigam, nos quais as freiras são as próprias responsáveis pelo seu sustento e segurança. Elas fazem coquetéis molotov e não têm medo de pegar em armas e atirar em mercenários se for preciso. Ou, ainda, a comunidade resistente de mulheres formada com o intuito de sobreviverem depois que os maridos foram para a guerra e nunca mais voltaram.

Entre erros e acertos, a representação feminina em de The Musketeers nos apresenta uma diversidade de mulheres, que assumem diversos papéis e mostram que é possível escrever personagens femininas com nuances e profundidade, compostas por motivações que vão além do par romântico ou que superem o papel de apenas alegoria para a trama, onde elas contribuam efetivamente para o desenvolvimento da história.

2 comentários

  1. Parabéns! Estou no fim da última temporada, sem fazer ideia do que vem pela frente, uma vez que desvinculou-se do contexto original, eu digo, do seu desenvolvimento. Sempre enfatizei a personalidade das mulheres desta série e apreciei. Gostaria que fosse mais reconhecida.

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