Categorias: HISTÓRIA, LITERATURA

As Filhas Sem Nome: um fragmento da realidade das mulheres chinesas por Xinran

Quando falamos sobre a China, qual é a primeira coisa que vem à sua cabeça? De dados geopolíticos que englobam o maior número de habitantes no mundo e uma economia poderosa às características culturais que vão do símbolo do dragão ao yakisoba passando pelo consumo de importados em massa, de minha parte, nunca me debrucei mais a fundo sobre a história do país. O que era necessário saber sobre a China, aprendi em livros didáticos, noticiários e uma ou outra curiosidade. Minha avidez por conhecimento não se estendia à cultura chinesa em geral, mas se for para falar do contexto tradicional das mulheres chinesas, a perspectiva é outra. E eu digo por quê.

Uma vez, no ensino médio, meu professor de geografia transmitiu um documentário sobre infanticídio de meninas chinesas. Não me recordo seu título, mas em breve pesquisa tenho quase certeza ter sido Os Quartos da Morte (The Dying Rooms, 1995). O documentário britânico dirigido por Kate Blewett e Brian Woods retratava as duras consequências da lei do controle de natalidade da China imposta em 1987, que ditava que a cada casal cabia ter uma única criança. A preferência dos chineses era ter um filho homem que pudesse passar adiante o sobrenome da família e se tornar um forte provedor, conforme a forte tradição do país que ainda acredita nesses valores. Quando o bebê nascia do sexo feminino, então, algumas famílias tomavam medidas drásticas para ter mais uma chance: elas abandonavam as meninas em orfanatos, que, superlotados, deixavam-nas em quartos isolados, sem cuidados e provisões, até que elas… morressem. Algumas tinham a sorte de ser adotadas por famílias estrangeiras, mas não era o destino de muitas outras.

Diante de tais informações, foi impossível, para mim, ignorar o contexto em que as mulheres chinesas estão inseridas, ainda que os outros aspectos do país não estivessem na minha lista de maiores interesses. Por isso, quando tomei em mãos o primeiro romance semifictício de Xinran, As Filhas Sem Nome, publicado em 2007, eu sabia que, mais do que entreter, aquele livro tinha a função de informar e conscientizar qualquer pessoa que viesse a lê-lo que o verdadeiro potencial da mulher chinesa não estava em seu sexo, mas na forma como elas são vistas e nas oportunidades que lhes são dadas. Xinran, como chinesa e jornalista, resolveu dedicar seu trabalho à coleta de relatos de outras mulheres chinesas e disseminação deles no mundo por meio de livros de entrevistas. Nascida em um contexto privilegiado, na infância ela viu a sua família sofrer as consequências da Revolução Cultural, e na vida adulta, depois de viajar extensivamente pela China coletando histórias, ela se mudou para Londres onde começou a escrever.

Antes de tomar contato com a sua obra, eu, de certa forma, admirava Xinran. Inúmeras vezes cruzei com As Boas Mulheres da China na prateleira giratória da livraria e disse para mim mesma que um dia leria aquele livro; um compilado de relatos sobre a vida das mulheres chinesas — mulheres de carne e osso, inseridas numa sociedade extremamente patriarcal como é a sociedade chinesa, mas que, ainda assim, têm sentimentos, enfrentam desafios, alimentam sonhos e histórias para contar. Aconteceu, entretanto, de a oportunidade de As Filhas Sem Nome aparecer primeiro, um livro nascido de relatos de três mulheres diferentes, com um traço em comum: as três quiseram livrar-se das amarras do seu pré-determinado destino e migraram para trabalhar em Nanjing, uma cidade em crescente desenvolvimento. Na introdução escrita por Xinran, ela explica a inspiração para a história:

“Uma vez, em uma pequena aldeia na província setentrional de Shanxi, ouvi falar de uma mulher que cometera suicídio bebendo pesticida porque não conseguia dar à luz a um menino — ou, como os chineses dizem, não conseguiam ‘pôr ovos’. Quase ninguém da aldeia foi ao enterro, e perguntei ao marido como ele se sentia a respeito. ‘Não se pode culpá-los’, ele disse, sem nenhum traço de rancor. Não querem ser contaminados pela sua má sorte. Além disso, é culpa dela só dar à luz um punhado de palitinhos e nenhuma cumeeira’. Fiquei chocada por essa maneira de se referir a meninas e meninos. Ao passo que os homens são considerados forte provedores, que sustentam o telhado da casa, as mulheres são apenas instrumentos frágeis e cotidianos, para serem usadas e então descartadas.” (p. 15-16)

Tornadas irmãs no livro, conhecemos um pouco da trajetória de Três, Cinco e Seis, jovens mulheres que jamais receberam um nome de verdade tamanha foi a decepção do pai de não ter um filho homem, e portanto foram chamadas pelo número de ordem dos nascimentos. A história se inicia no ano de 2001, quando Três, então com dezenove anos, pede ajuda ao tio para fugir da aldeia onde morava na província de Anhui, porque seu pai pretendia casá-la com o filho aleijado de um oficial. O tio Dois, apiedando-se da situação da sobrinha, mas sem saber o que fazer com ela, leva-a até a Senhora do Tofu, esposa de um amigo, para que ela possa lhe dar algum direcionamento. Ela própria escapara de um casamento arranjado para fugir com seu namorado da adolescência, e com o pouco dinheiro que ambos tinham, passaram dificuldades e tiveram de trabalhar muito até se estabelecer. A Senhora do Tofu começou como ajudante num restaurante, até ter dinheiro o suficiente para ter sua própria lojinha, modesta, onde vendia tofu fedorento frito. Mas apesar de sua determinação férrea, a Senhora do Tofu tinha um bom coração, e uma ótima reputação por suas qualidades. Então, ela logo tratou de levar o tio Dois e a sobrinha Três até o velho salgueiro, onde velhos senhores que por lá ficavam arranjaram uma recomendação de emprego para ela em Nanjing, capital da província de Jiangsu.

Quando perguntada quais habilidades ela tinha, a inocente Três não tinha noção daquilo que ela mesma poderia oferecer, o que não era muito. Contudo, ao se mostrar habilidosa em fazer belos arranjos com verduras e legumes, um dos senhores a encaminhou para um pequeno restaurante de fast-food caseiro, administrado pelo irmão e a cunhada, onde Três poderia auxiliar fazendo arranjos com os ingredientes para exibir na vitrine e chamar a atenção dos clientes. O restaurante chamava-se Bobo Feliz, e procurava ser tão tradicional quanto a história do seu proprietário. O Sr. Guan Buyan (irmão do Sr. Guan Buyu, da agência de empregos do velho salgueiro), vinha de uma família de intelectuais desprezados e rebaixados durante a Revolução Cultural chinesa, um movimento que valorizava o trabalho no campo e no comércio ao invés do “conhecimento inútil dos livros”. Embora o pai deles fizesse de tudo para se manter na posição de intelectual e passá-la adiante aos filhos apesar da oposição, Guan Buyan não tinha aptidão para tal. Levou algumas décadas para que os chineses percebessem que o boom comercial não era passageiro, e muito além da expectativa, tinha potencial para ser extremamente lucrativo. Por isso, em 2000, o Sr. Guan Buyan resolveu arriscar no mar do comércio e abrir um restaurante pequeno com a esposa, Wang Tong. Seria um estabelecimento que contrastaria com os vizinhos internacionais McDonald’s e Kentucky Fried Chicken, nomeado em homenagem a um ensinamento da falecida mãe que costumava dizer “Não fique triste. Se não há razão para ser alegre, procure a felicidade, pois apenas aqueles que fazem a si mesmo de bobo podem ser felizes de verdade”. O restaurante Bobo Feliz terminou por ser, enfim, um desses pequenos estabelecimentos chineses de pessoas que procuravam seu lugar ao sol no comércio crescente de Nanjing, que priorizavam vender cultura em seus produtos além de qualquer ambição. Foi nesse lugar que Três se estabeleceu, não sem alguma dificuldade, por alguns anos para tentar vencer seu destino.

Enquanto isso, na aldeia, Li Zhongguo, o pai das meninas, tentava lidar com o fardo de ser pai apenas de seis “palitinhos” e que a pouca honra que havia conquistado pelo casamento da filha mais velha com um oficial, havia caído por terra quando sua terceira filha decidira ir embora trabalhar em Nanjing. Contudo, a cada vez que Três retornava para casa para o Festival da Primavera (correspondente ao Ano Novo Chinês) trazendo uma quantia de dinheiro que superava os ganhos da família no campo durante um ano, ele começou a pensar que, talvez, seria uma boa ideia enviar suas outras filhas para a cidade para que elas pudessem trabalhar também. Quatro era surda-muda, e não tinha condições de deixar a família para morar sozinha na cidade. Cinco tinha a fama da aldeia de ser a filha feia e estúpida, portanto Li Zhongguo acreditava que ela não daria motivo de preocupações longe de casa; em contrapartida, a caçula Seis era a única menina da aldeia a ter concluído o ensino médio, e por isso o pai também acreditava que ela tinhas grandes chances de conseguir uma boa oportunidade. Afinal, optou por mandar as duas filhas mais novas, que, assim como Três, foram até o velho salgueiro procurar emprego.

Por estarem familiarizados com o procedimento, Três e o tio Dois auxiliaram as duas irmãs mais novas, e rapidamente Cinco conseguiu um contrato para trabalhar no Centro de Águas do Dragão, um centro de piscinas medicinais, ao passo que Seis, levada para o escritório do senhor Guan Buyu, e demonstrando um grande interesse por livros, acabou sendo levada para trabalhar na Casa de Chá do Apreciador de Livros, uma casa de chá tradicional onde os frequentadores poderiam passar horas a fio lendo e tomando chá. Existe um contraste muito grande entre os caminhos tomados por Cinco e Seis, pois enquanto Cinco exerce um trabalho funcional que não exige dela habilidades intelectuais (Cinco é analfabeta), Seis, como recepcionista, exerce um trabalho completamente oposto. Ainda assim, por estarem muito atrasadas em relação ao avanço dos costumes da cidade, ambas estão paradoxalmente na mesma posição. Depois de encaminhadas, os capítulos de desenvolvimento da história procuram contextualizar um pouco da rotina das meninas nos novos empregos, das pessoas que as acolheram, o forte contraste entre os costumes do interior e da cidade, e o contato e a troca com estrangeiros na casa de chá.

É certo dizer que as meninas são como ratinhos assustados no meio de um centro urbano como Nanjing — tudo na cidade destoa daquilo que elas estavam acostumadas em Anhui, do modo de falar aos costumes. Elas são tímidas, humildes, e se chocam facilmente com a liberdade que as mulheres da cidades tinham. Mas a humildade acaba sendo um ponto forte na trajetória delas, que terminam por ser extremamente gratas aos seus mentores e por isso mesmo se dedicam ao trabalho com muito afinco. Especialmente Cinco, que sempre foi subjugada por ser analfabeta e feia. É ela que mais desenvolve sua inteligência prática sem se dar conta do que está fazendo, é ela que olha para os cantos da cidade sempre pensando na família que deixou para trás para estar ali. Guiadas por Três, que já é uma veterana em Nanjing, Cinco e Seis passam a explorar a cidade durante suas folgas e aprendem cada vez mais sobre aquele estilo de vida. Elas sentem falta de casa e anseiam por voltar, mas sabem reconhecer que são muito mais úteis trabalhando ali do que na aldeia, onde não são nada mais do que um lembrete do fracasso da família e onde seu melhor destino é um casamento arranjado.

O desfecho do romance se dá depois do capítulo em que Três se apaixona por um moço que a salvara de uma confusão no restaurante. Até então, a menina era conhecida por ter um “coração de pedra” e não esboçava qualquer reação ao romance. Mas o amor platônico fez mais mal do que bem para Três, que sem poder conversar com ninguém sobre o que estava sentindo, fica visivelmente abatida e perde o ar saudável que ganhara quando passou em morar em Nanjing. Então, as três retornam à casa para o Festival da Primavera, divididas entre alegria do sucesso no trabalho e a preocupação com a irmã mais velha. A mãe percebe que há de algo de errado com a filha, mas não pode dividir as angústias com ela porque não é o costume. Se conversassem, talvez ambas pudessem encontrar apoio mútuo em meio a tudo que envolve sua condição de mulher na sociedade, onde seus sentimentos são desconsiderados em prol do dever do casamento pela honra. Reunidos mais uma vez, as três meninas entregam as lembranças que trouxeram de Nanjing para os pais e a irmã Quatro e contam histórias da cidade e das pessoas que conheceram. Mas é quando as meninas entregam o dinheiro que ganharam que a história se encerra e a emoção se intensifica. Li Zhongguo, surpreso com a quantia — em um ano cada uma delas conseguiu guardar mais do que a família conseguia no campo —, se questiona pela primeira vez se suas meninas seriam, afinal, palitinhos excepcionais, capazes de sustentar a o telhado da casa.

No epílogo, Xinran descreve o destino que as três mulheres, aquelas que serviam de inspiração para sua inspiração, tiveram. É meio decepcionante saber que a moça que inspirou Três terminou por retornar à aldeia e aceitar o casamento arranjado, após perder o ar de vitalidade pelo coração partido, e as moças que inspiraram Cinco e Seis perderam contato com a autora e o lugar onde elas trabalhavam não existe mais. Mas nas últimas páginas do livro, ela reflete sobre a história das meninas chinesas, os “palitinhos”, enquanto recorda de uma viagem que fizera à Tasmânia em que observara um bando de pequenos pinguins tasmanianos que lutavam para abrir caminho até o oceano:

“As palavras do guia me pareceram uma nota de rodapé apropriada para a história de Três, Cinco e Seis, e mesmo de todas as mulheres camponesas que vão trabalhar nas cidades grandes da China, ou que aram os campos da aurora ao pôr do sol. Elas não têm as vantagens com as quais nós nascemos — os joelhos que nos permitem caminhar livremente pelas nossas vidas e as nossas escolhas. Muitas nunca foram aninhadas no colo pelos pais, nunca pegaram um livro nas mãos, nunca tiveram roupas quentes, nunca comeram até a saciedade. Mas, em condições que consideraríamos “impossíveis”, lutam por sua autoestima, suas aspirações, seus amores.” (p. 279-280)

Tomar contato com uma história como essa é sempre um choque de realidade. A cultura da China induz seu povo a responsabilizar exclusivamente as mulheres em situações que estão além de qualquer controle humano (como a escolha do sexo do bebê), e situações que são mais complexas do que eles fazem acreditar (se um homem trai a esposa, por exemplo, a culpa recairá sobre a amante que o “seduziu”, a mulher sem moral que deve ser condenada). Enquanto aqui acreditamos que temos um longo caminho a percorrer em nossa luta pelo direito de escolha e propriedade do nosso corpo, entre outras, lá os direitos que para nós já são considerados básicos ainda precisam ser alcançados. O movimento não é sincrônico, e pensar nisso é desolador. Se nossas conquistas ainda não nos satisfaz, imagine ter menos do que isso. Imagine ainda precisar lutar pela própria humanização. Muitas mulheres chinesas desconhecem essa realidade em que elas podem ser educadas e independentes, que sua existência pode ser livre de uma carga tão pesada de culpa e responsabilização. Não cabe a nós condená-las ou pressioná-las para lutar pelos mesmos objetivos que almejamos quando o contexto cultural é completamente outro. Aos poucos, dentro de seu próprio tempo e espaço, as mulheres descobrem que são capazes de mais do que aquilo que fizeram acreditá-las que eram, e o melhor que podemos fazer é respeitá-las e apoiá-las, além de torcer para que um dia o quadro seja outro, mundialmente, e a força do nosso sexo tenha liberdade para sustentar telhados e muito mais.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes, que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Se interessou pelo livro? Clique aqui e compre direto no site da Amazon!

4 comentários

  1. Amei ver uma resenha da Xinran aqui no Valkírias! Conheci a autora depois que li As boas mulheres da China na faculdade e desde então venho lendo mais coisas delas. Com certeza vou ler esse depois!

    1. Que bom que gostou da resenha, Julie! Foi uma experiência muito enriquecedora ler esse livro e escrever sobre ele. Certamente vou procurar As Boas Mulheres da China num futuro próximo.

Fechado para novos comentários.