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Aquarius, um filme sobre uma mulher

Era uma vez um filme brasileiro. Era uma vez um filme brasileiro que não era da Globo Filmes. Era uma vez um filme brasileiro que foi apontado por uma revista especializada francesa como um dos dez filmes mais aguardados do ano. Era uma vez um filme cuja equipe resolveu denunciar o golpe de estado em pleno tapete vermelho do Festival de Cannes. Era uma vez Aquarius.

Aquarius, dirigido por Kleber Mendonça Filho e estrelado por Sônia Braga, tem uma sinopse não muito animadora e que definitivamente não faz jus à obra que é. O filme conta a história de Clara (Sônia Braga), uma mulher de 65 anos que mora sozinha em um apartamento de frente para a praia, em Recife, no qual criou os filhos e viveu boa parte da sua vida. Agora, uma construtora (que já comprou todos os outros apartamentos do edifício), quer comprar também o apartamento de Clara para derrubar o prédio e construir no lugar um empreendimento imobiliário de luxo. Mas Clara se recusa a vender e inicia uma guerra contra a construtora.

O filme foi indicado à Palma de Ouro e ao Queer Palm de Cannes e a melhor filme no Festival de Jerusalém. Aquarius ganhou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Sydney, Festival de Transatlantyk e Festival de Amsterdã, além do Prêmio do Juri e Melhor Atriz (Sônia Braga), no Festival de Lima. Levou 50.000 pessoas ao cinema no final de semana de estreia e é considerado o favorito para a vaga brasileira no Oscar do ano que vem.

Comparando a sinopse com a repercussão do filme, chega a parecer que ele é só o hype. Mas não é. E começa a mostrar a que veio já no trailer.

A história contada na sinopse não é mentirosa, mas é apenas o plano de fundo, porque a história real do filme é irresumível. Aquarius conta a história da vida real. Ele faz uma abordagem inversa à que estamos acostumados.

Em geral, filmes recortam a vida real e mostram apenas as partes que interessam ao desenvolvimento da trama. Aquarius mostra a vida, enquanto a “trama central” se desenrola no plano de fundo. A imensa maioria dos diálogos do filme não tem nenhuma relação com a trama, são só conversas — e é muito fácil se identificar com elas. Na verdade, o que é contado ali é a vida de Clara.

Clara é uma jornalista e escritora especializada em música (e a trilha sonora do filme é boa demais), viúva, mãe de três filhos, avó de dois netos, completamente fora dos padrões de avó que estamos acostumados. Ela sai para dançar com as amigas, flerta, sente desejo, nada todos os dias na praia, se dedica com fervor a beber garrafas de vinho inteiras e ama intensamente a vida e todas as pessoas que fazem parte dela. Clara apareceu para mostrar que a vida não acaba em certa idade, e que chegar à “terceira idade” (chega a ser cômico usar essa expressão para falar da Clara) sem um marido está longe de significar envelhecer sozinha. E que envelhecer “sozinha” está longe de ser ruim.

Aquarius também é cheio de sutilezas. Enquanto a convenção social dita que mulheres mais velhas não podem ter cabelos longos, Clara tem a relação quase romântica com o próprio cabelo — que é, de um lado, mais uma forma de expressar a ligação da personagem com a vida (quando ela teve câncer de mama, na juventude, ela perdeu os cabelos), e de outro um ato de resistência contra o que a sociedade impõe como comportamento adequado para mulheres mais velhas. No filme inteiro a posição firme, forte e inflexível de Clara é contestada. Ela é chamada de louca, é colocada em posição de mulher velha e frágil por interesses alheios travestidos de preocupação.

Fora do plano central, mas de forma clara, outras críticas sociais também são apresentadas de forma mais ou menos explícita. Desde a primeira cena, quando um grupo de jovens negros se junta às pessoas brancas de classe média alta que fazem exercícios (bem exóticos) na praia e o desconforto é tão palpável que é capturado pela câmera. Tem a empregada que é quase da família. Com certeza tem outros que eu não consigo me lembrar agora.

A direção do filme é refrescante e ótima, as atuações são todas maravilhosas, a fotografia é bela e a trilha sonora. A trilha sonora, gente. Ela é boa demais.

Não bastasse o filme como um todo, o final é especialmente genial. Sem spoilers, prometo, mas preciso dizer que a história foi encerrada no ponto exato para permitir o único final apoteótico possível para aquela história.

Aquarius é um filme sobre Clara. Clara é uma personagem muito humana, que dialoga diretamente com mulheres (da classe média para cima) de qualquer idade. Ela poderia ser eu daqui a quarenta anos. Ela poderia ser eu hoje. Clara é uma mulher atemporal. E com o fim da playlist da trilha sonora do filme, eu encerro essa resenha com um pedido simples: assistam Aquarius.

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