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Crítica: Antes Que Eu Vá

“Sísifo. Não é uma DST”, diz aquela que é provavelmente a fala mais repetida ao longo das menos de duas horas de duração de Antes Que Eu Vá, filme de Ry Russo-Young que adapta o romance jovem adulto de Lauren Oliver. Na mitologia grega, Sísifo é punido com uma tarefa eterna e interminável: a de carregar uma rocha para o topo de uma montanha só para vê-la voltar à base todas as vezes — e, consequentemente, precisar carregá-la de novo, e de novo e de novo. Não é por acaso que a única aula retratada no longa, que tem como principal cenário uma escola de ensino médio, seja focada nesse mito; no coração da trama de Antes Que Eu Vá está, afinal, a repetição sem fim de um único dia na vida de sua protagonista.

O que não é, nem de longe, uma forma nova: Feitiço do Tempo, estrelado por Bill Murray, já fez isso lá nos idos de 1993. Phil, seu protagonista extremamente mal-humorado e impaciente com tudo e todos ao seu redor, ao perceber que não há escapatória possível de sua sina, não importando sua atitude, não importa que estivesse disposto a tirar a própria vida para ficar em paz, se vê obrigado a viver o mesmo dia, todos os dias, como se na verdade estivesse vivendo um dia depois do outro. Ele é forçado a aceitar o eterno Dia da Marmota de uma maneira mais aberta, ou então estaria condenado ao perpétuo desespero de tentar e jamais conseguir fugir; sua única maneira de alcançar alguma paz interior era trabalhar a própria atitude. O filme carrega uma óbvia lição moral, mas ela é passada de uma maneira leve e cômica, apenas sugerida, sem jamais soar como uma pregação e sem nenhum traço de pretensão, e por isso funciona tão bem. O filme de Russo-Young não é tão sutil, assim como não é sutil repetir “Sísifo” na cara de sua protagonista uma dezena de vezes, mas ainda assim consegue ser eficiente.

Em Antes Que Eu Vá, Samantha Kingston (Zoey Deutch) não é mal-humorada ou impaciente, mas uma adolescente autocentrada que, a partir da segurança de pertencer aos padrões socialmente impostos e também a um unido grupo de amigas nadando em popularidade, que tem como uma de suas atividades diárias praticar bullying com quem não se encaixa neles com tanta facilidade. É depois de participar ativamente de um círculo de humilhação pública que tem como alvo sua colega de escola Juliet (Elena Kampuris), o clichê da esquisitona dos filmes de ensino médio americanos, que Samantha se envolve em um acidente de carro fatal, mas logo depois acorda intocada em sua cama, como se nada tivesse acontecido, inclusive o dia inteirinho que acabara de vivenciar, o que a deixa compreensivelmente confusa e exasperada, especialmente quando volta a acontecer de novo e de novo. O resto do filme é para ela um percurso pelos cinco estágios do luto, da negação à aceitação. Não há uma explicação concreta para o que ocorre com Samantha (embora desperte a ideia de purgatório), o que pode ser frustrante, mas isso não importa de verdade.

Assim como Os Treze Porquês, outro romance jovem adulto lançado mais ou menos à mesma época, que ganhou o modelo Netflix e já foi problematizado à exaustão internet afora nos últimos dois meses, Antes Que Eu Vá se propõe a dialogar com o público adolescente sobre temas tão pertinentes quanto complicados: bullying e, em menor escala, suicídio. Diferente do que acontece na primeira história, no entanto, aqui quem ganha protagonismo é a própria bully. No livro, Sam, que também é narradora, usa a segunda pessoa para perguntar se aquilo que fazia é assim tão diferente do que todos nós fazemos. Ou, melhor dizendo, se nós também não somos cruéis, se não fazemos vista grossa para a crueldade alheia para nos protegermos, se nunca rimos de brincadeiras maldosas para nos sentirmos parte de um grupo, especialmente numa época da vida em que ser aceito é tão importante. A obra não justifica o comportamento de Sam e das amigas, mas também não busca estabelecer quem é Bom e quem é Mau. É profundamente incômodo assistir aos primeiros vinte minutos do filme, àquelas garotas se divertindo às custas do sofrimento alheio, num comportamento que parece quase caricato para que a mensagem — não seja um babaca, não pratique bullying — chegue com mais facilidade. Mas, ao mesmo tempo, depois que Sam passa por sua experiência de iluminação, ela não sente necessidade de descartar aquelas garotas, elas não se transformam no mal que precisaria expurgar de sua vida para ser uma pessoa melhor, e ela faz questão de deixar claro por que motivo ama cada uma, ainda que, depois de tantos dias repetidos, esteja cada vez mais ciente dos muitos defeitos delas — só que também está mais ciente dos seus, a ponto de questionar em voz alta: eu sou uma boa pessoa?

Tanto o romance de Lauren Oliver quanto o longa de Ry Russo-Young falam sobre garotas adolescentes numa linguagem que busca falar também a essas garotas: vai da presença maciça de gírias como a muito repetida “bae” (que por aqui virou nosso onipresente “miga”) à trilha sonora, a todos os rituais clichês das garotas adolescentes — noites do pijama, a preparação conjunta para uma festinha na casa de alguém, o cantar em voz alta junto com a música que toca no carro. Elas não são vistas a partir de um olhar Adulto Mais Evoluído, e aí provavelmente reside sua maior força. Quando Sam questiona Lindsay (Halston Sage), provavelmente sua amiga mais deliberadamente maldosa, sobre por que nunca haviam conversado a respeito do divórcio de seus pais, Lindsay pergunta por que falaria sobre algo que acontecera tanto tempo atrás, ao que Sam responde que falariam daquilo porque era importante, porque tinha acontecido com ela, simples assim. Somos convidados a levá-las a sério mesmo que suas atitudes incomodem, mesmo que sua experiência pareça distante. Numa narrativa com uma carga didática gigantesca, tanto Oliver quanto Russo-Young conseguem apresentar uma personagem com muitas nuances, sem aquele tom artificial de limpeza e correção que faz muitas histórias direcionadas ao público adolescente parecerem apenas fábulas nada próxima de nossas realidades mais complicadas e múltiplas.

Quando uma colunista da Slate argumentou que adultos não deveriam ler literatura vendida como jovem adulta, seu principal argumento era que essa literatura, ao final, sempre encontra exatamente as expectativas do público e traz conclusões que, trazendo sejam sorrisos ou sejam lágrimas, são sempre satisfatórias para o leitor, sem ambiguidade alguma, com tudo bem amarrado até demais. A obra de Lauren Oliver faz sua teoria cair por terra. Não há nada de muito satisfatório aqui, e é impossível não pensar em Sísifo novamente, empurrando a tanto custo aquela rocha montanha acima para… para que, exatamente? A jornada de Sam fala sobre altruísmo e sacrifício? Fala sobre colocar o outro em primeiro lugar, sempre, em qualquer situação? Dificilmente.

Seria fácil que Antes Que Eu Vá caísse na mensagem banal e vazia de aproveitar cada dia como se fosse o último, mas não é o que ele faz. O roteiro parece muito consciente de que isso nem sempre é possível e de que não temos controle sobre as situações externas da maneira como gostaríamos. Mais do que isso, sabe que viver cada dia como se fosse o último querendo dizer fazer tudo aquilo que eu quero, independente daqueles que me rodeiam, em última instância também significa ignorar que nossos atos têm consequências e refletem, em menor ou maior escala, no outro. A lição maior para Sam parece ser essa: ela quer viver um dia bom; mas um dia bom, ela percebe, também significa um esforço para ser parte de um dia que seja bom para as pessoas ao seu redor. O filme não tem receita para eles — um dia bom pode significar sair para dançar com suas melhores amigas ou ficar em casa com elas, pode significar passar o dia correndo com a irmã mais nova e jantar em paz com a família, pode significar ganhar uma rosa ou mandar um recado gentil para outra pessoa —, mas todos envolvem o cuidado consigo e com o outro. Antes Que Eu Vá acredita na capacidade de sua protagonista de estender esse cuidado às pessoas mais vulneráveis do que ela, e ela, por sua vez, acredita que suas amigas podem fazer a mesma coisa.

A sexta-feira, 12 de fevereiro, repetida à exaustão no longa de Russo-Young é fria, escura e cinza, tão cinza quanto a representação de sua protagonista e de toda a experiência escolar, que é mais difícil e inescapável para alguns. Antes Que Eu Vá cai em alguns clichês da longa lista de filmes adolescentes que já vimos e ainda veremos; salta aos olhos a ausência de pais, mães e figuras de autoridade humanizadas de modo geral (e é marcante que a mãe de Samantha, a única presença adulta, seja aquele tipo de mãe da ficção que só faz andar bem maquiada e de salto alto pela cozinha às seis da manhã). Embora se proponha a seguir a cartilha da representatividade, com um grupo etnicamente diverso de amigas e uma longa discussão sobre bullying e orientação sexual, nenhuma das personagens que cercam Samantha têm vida interior o suficiente para que isso seja realmente significativo. Nem Juliet, um catalisador tão importante para a trajetória de Samantha, ganha um desenvolvimento relevante. Ainda assim, Zoey Deutch carrega Sam e sua história com muita graciosidade, e é fácil torcer para que ela tenha um destino diferente daquele que vemos ser encaminhado logo no começo do filme. Talvez não seja possível para ela, e talvez, se você for como eu, sua história leve à conclusão mais ridiculamente óbvia de todas — vamos todos morrer mesmo, afinal. Mas ao olhar para os dias tão iguais e tão diferentes de Sam, também fica evidente (e ficaria mesmo sem as dramáticas narrações em off) que é possível encontrar algum sentido nessa grande experiência sisifiana que é a vida.