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A Mulher Entre Nós: o relacionamento abusivo enquanto terror

Cresci lendo romances policiais e de suspense — todos escritos por homens. Neles, as mulheres estavam sempre em posição de desvantagem, fosse como mero objeto sexual ou o elemento de perdição do protagonista, mas nunca como donas de sua narrativa. Do ano passado para cá, esse cenário mudou: conheci Gillian Flynn, uma autora que me mostrou que mulheres escreviam, sim, histórias de suspense e policiais, e, a partir de então, percebi a importância de estarmos em todos os gêneros literários, sobretudo o policial e o suspense.

Como podemos mudar a percepção sobre nós mesmas se não somos as donas de nossas narrativas e não escolhemos o que queremos contar e como vamos fazer isso? Quando falamos sobre relacionamentos abusivos, a necessidade de contarmos nossas próprias histórias torna-se ainda mais urgente, pois vivemos em uma sociedade que até hoje nos vende relacionamentos abusivos como amor. Um dos maiores relacionamentos abusivos da televisão norte-americana, retratado pelo novelão do horário nobre, Dallas, é um exemplo muito claro disso. Durante os 20 anos em que a série ficou no ar, as pessoas torceram pelo relacionamento entre os antagonistas que nada mais era do que um relacionamento abusivo com direito à perseguição e espancamento gratuitos.

E se a história tivesse sido contada pela vítima do relacionamento, como seria? É o que o livro das autoras Greer Hendricks e Sarah Pekkanen se propõem a contar. A Mulher Entre Nós, lançado pelo selo Paralela, da Companhia das Letras, e traduzido por Alexandre Boide, tece uma narrativa de suspense, na qual o principal medo é o próprio relacionamento abusivo e a perspectiva de a protagonista não conseguir se desvencilhar dele.

Atenção: este texto contém spoilers!

A dupla dinâmica de autoras que teve o romance comprado pelo cinema antes mesmo de terminá-lo

Em 2008, os destinos de Greer Hendricks e Sarah Pekkanen cruzaram-se. Isso aconteceu quando Pekkanen vendeu seu primeiro livro para a Simon & Schuster, empresa onde Hendricks era editora. Elas trabalharam juntas em cerca de oito livros escritos por Sarah, até Greer confessar que tinha vontade de escrever um romance. Nascia, então, uma parceria entre duas mulheres interessadas por psicologia e que não cozinhavam bem. Fiquei absolutamente encantada pela maneira como as duas escreveram A Mulher Entre Nós: elas editavam ao mesmo tempo o arquivo do livro no Google Docs para que pudessem ver o que cada uma digitava. Sobre o processo, Pekannan declara:

“Nós trabalhamos cada fala. (…) Geralmente, uma de nós pegava o teclado, continuávamos conversando, e a outra entrava no clima e começava a digitar simultaneamente. Depois nos comunicávamos por taquigrafia – apenas dizendo, “É isso, é, sim, não, não é, tudo bem, entendi”. Nem precisávamos completar as frases, pois estávamos muito sintonizadas.”

Esse processo incrível de escrita, no qual ambas escreveram toda a obra juntas, sem dividir os capítulos com os quais cada uma ficaria, é o que dá o tom sombrio, e de mistério, que a narrativa consegue sustentar tão bem.

Outra informação fantástica é que A Mulher Entre Nós foi comprado pela Amblin Partners, produtora de Steven Spielberg, antes mesmo de estar pronto. Vários produtores estavam interessados na trama, inclusive, após terem visto somente um esboço. No entanto, ao falarem com Holly Bario, sócia na Amblin, as autoras perceberam a força de ter sua obra adaptada pela mesma produtora que fez A Garota no Trem. Só nos resta esperar que a adaptação seja tão envolvente, e ao mesmo tempo passível de inúmeras análises como o livro.

A estrutura narrativa

Logo no prólogo da história, somos apresentadas ao que parece o enredo principal da história: uma mulher mais velha foi trocada por outra mais jovem. A narradora, cujo nome ainda não conhecemos, termina a primeira página do livro com as seguintes frases:

“Para essa linda jovem com rosto em formato de coração e corpo sensual — a mulher por quem meu marido Richard me trocou —, sou invisível como o pombo ciscando na calçada ao meu lado.
Ela não faz ideia do que vai acontecer se continuar agindo assim. Não faz a menor ideia.”

No capítulo seguinte, a história começa a ser narrada em terceira pessoa, e Nellie, a vítima do suposto ódio da narradora do prólogo, nos é apresentada. Professora para crianças e garçonete nas horas vagas, a personagem é jovem, bonita e gentil e parece estar radiante com seu casamento com Richard, um homem muito rico e mais velho. Ele é tudo com o que uma mulher sonha: atencioso, companheiro e um porto seguro.

“Nellie contara a Richard alguns detalhes de um de seus pesadelos recorrentes e sentira os braços dele e uma voz grave murmurando em seu ouvido: “Estou aqui, amor. Você está segura comigo”. Agarrada a ele, sentia a segurança pela qual ansiara a vida toda, mesmo antes do incidente que havia mudado tudo. Com Richard ao seu lado, ela conseguia ceder ao sono profundo e vulnerável. Era como se o chão instável tivesse se solidificado sob seus pés.”

A escolha por alternar entre primeira e terceira pessoa não é, de forma alguma, aleatória. A intenção das autoras parece estabelecer o teor entre o relato de duas mulheres que passaram pela vida de Richard: a do passado e a do futuro. Em primeira pessoa, temos um relato amargo, desorientado, de alguém que não aceita o término do relacionamento e sente dificuldade em se reintegrar ao mundo e que se choca radicalmente com o que Nellie nos informa em primeira pessoa:

“Uma sensação familiar se instala em mim, como o abraço de uma velha amiga. Parece que estou me dissolvendo no colchão. Talvez minha mãe se sentisse desse modo em seus dias de luzes apagadas. Seria bom se eu pudesse entender melhor na época; eu me sentia abandonada, mas agora sei como é experimentar um sofrimento pesado demais para suportar. Tudo o que você quer é se esconder em um lugar seguro e esperar a tempestade passar. Mas agora é tarde demais para dizer isso a ela. Meus pais estão mortos.”

Aos poucos, Hendricks e Pekkanen começam a nos revelar outros detalhes sobre a narradora em primeira pessoa. O nome dela é Vanessa e sua mãe se suicidou. Após o final do casamento, ela foi morar com Tia Charlotte. Há algo muito perturbador no relato de Vanessa, e é o fato de ela começar a perceber que talvez esteja tendo, como a mãe, “dias de luzes apagadas”, um eufemismo para a depressão. Entre os acontecimentos presentes do livro, a personagem relembra seus tempos de casada com Richard, mas tudo com altas doses de ironia e amargor. O suspense chega ao ápice quando descobrimos que as duas pessoas, a narradora em primeira e terceira pessoa, são a mesma. Nellie e Vanessa são a mesma pessoa. Uma no presente, totalmente devastada; e a outra no passado, cheia de planos e que amava lecionar. Então nos perguntamos: como uma metamorfose tão chocante pode ter acontecido?

Aconteceu porque Richard era um marido abusivo e acabou com a vida da ex-esposa. A estrutura narrativa apenas está refletindo os efeitos de um relacionamento abusivo na vida de uma mulher. A escolha dos nomes para a mesma mulher também reflete os efeitos dessa relação tóxica: Nellie é o apelido dado por Richard, enquanto Vanessa é a pessoa que Richard jamais aceitou e tentou podar durante toda a relação:

“Mas agora Nellie se foi para sempre.
Sou apenas Vanessa.”

Quem é a mulher entre nós?

À medida em que a história vai se desenrolando, você percebe que há algo muito errado com Richard. Ele é atencioso demais, presente demais. Aparece nos lugares onde Nellie está sem ser convidado. Um dos primeiros sinais de alerta é quando ele aparece do nada na despedida de solteira da noiva.

A partir do acontecimento da despedida de solteira, vemos que Richard é o típico homem abusivo: ele cerca a noiva com abusos disfarçados de cuidado. Quando o casal se conhece, ele diz para que ela nunca corte o cabelo. O que parece um elogio, soa como uma imposição. E é mesmo, pois Richard pune a esposa, em um ponto da história, por ter cortado e pintado os cabelos, a primeira das “rebeldias” de Nellie.

Sendo assim, não existe espaço para romantização. As autoras escancaram o relacionamento abusivo, e acho que esse é o grande medo da trama. Talvez o que torne o livro tão mágico para mim é justamente a capacidade de tomar um medo real das mulheres e transformá-lo em um elemento de suspense e terror. O terror aqui são as ligações anônimas recebidas por Nellie, é o fato de o marido querer engravidar e ela não, e ainda ser obrigada a frequentar médicos para conseguir ter um filho. É agonizante porque é real demais. O agente do medo é os abusos físicos e psicológicos sofridos pela personagem ao longo da trama.

A mulher entre nós do título nada mais é do que a verdadeira Nellie, no caso, Vanessa. Richard não suporta a ideia de conviver com a mulher com quem casou. Quer dizer, se ele não puder podá-la, ela se torna um obstáculo na vida dele. Logo, precisa ser descartada. Quanto a isso, as autoras aguardam algumas surpresas muito boas, que não perdem nada para Gillian Flynn e Karin Slaughter. Dessa forma, o título mais uma vez nos prega uma boa pegadinha, porque ele acaba se revelando o oposto do que parece.

A Mulher Entre Nós é a história sobre relacionamento abusivo que outras narrativas sempre tentam fantasiar de amor romântico. Richard poderia ser Edward Cullen, Heathcliff ou Christian Gray. E essa cortina rasgada, digamos assim, é o que nos faz refletir sobre o que consideramos amor e por que fazemos isso. A cultura molda nossa ideia sobre absolutamente tudo. Que bom que existe um livro como A Mulher Entre Nós para solidificar a afirmação de que abuso não é amor. E nunca será, por mais que tentem nos enfiar um Christian Gray goela abaixo.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras


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1 comentário

  1. Olá, Jessica. Gostei da sua resenha/análise sobre a narrativa do livro. De todas que eu li, foi a melhor perspectiva e abordagem da trama, sem falar que muitos leitores, com certeza, imaginaram ou entenderam a narrativa sob a perspectiva de duas personagens diferentes. O livro é muito interessante. Sugestão de análise: “A garota no gelo.”

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