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A maternidade segundo Buchi Emecheta

Não é exagero dizer que Buchi Emecheta transformou a literatura de língua inglesa. Nascida em Lagos, na Nigéria, em 1944, Florence Onyebuchi “Buchi” Emecheta publicou seu primeiro livro (In The Ditch, ainda sem tradução para o português) em meados de 1972, quando tinha apenas 28 anos e, desde então, escreveu mais de vinte obras entre romances, memórias, ensaios e roteiros, além de pequenas histórias voltadas ao público infantojuvenil, que a consolidaram não apenas como uma escritora brilhante, mas como uma voz capaz de atravessar fronteiras de cultura, geração e espaço.

Publicado pela primeira vez em 1979, As Alegrias da Maternidade é o seu quinto — e também mais prolífico — romance, e um exemplo bastante sólido do pioneirismo de seu trabalho. Em pouco mais de 300 páginas, a autora narra a complexa trajetória de Nnu Ego, uma jovem nigeriana radicada em Lagos após o casamento, em algum momento entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930 — período em que a cidade ainda permanecia sob o controle britânico, tornando-se independente apenas trinta anos mais tarde —, desde antes de seu nascimento, com o relacionamento de seus pais e as antigas tradições que lhe custariam tão caro no futuro; até o casamento, a maternidade e, posteriormente, a morte, quando um altar é literalmente erguido em sua homenagem.

Atenção: este texto contém spoilers!

“Pela primeira vez desde que vira o filho na esteira, lágrimas de choque e frustração escorreram pela face de Nnu Ego. Quem lhe daria a força para contar ao mundo que fora mãe, mas fracassara? Como as pessoas conseguiriam entender que ela desejara tão desesperadamente ser uma mulher como todas as outras, mas fracassara pela segunda vez?”

Filha de Nwokocha Agbadi, líder de um povoado interiorano, e Ona, também filha de um grande e rico líder nigeriano, Nnu Ego cresce cercada de amor, cuidados e conforto — uma vida que parecia destinada a manter após o casamento com Amatokwu, seu primeiro marido. Entretanto, a dificuldade em conceber uma criança logo se apresenta como um problema para o casal. O relacionamento desmorona rapidamente, sobretudo após a chegada da segunda esposa de seu marido, que não demora a engravidar e dar luz a um filho homem, o que por fim leva Nnu Ego de volta ao povoado do pai — inicialmente para recuperar-se das violências (físicas e emocionais) que lhe foram infligidas, mas de maneira definitiva não muito tempo depois, quando torna-se evidente que seu desejo não é retomar a vida com Amatokwu, mas permanecer ao lado da família e da comunidade que conhecia.

Com o tempo, novos arranjos para um casamento começam a ser feitos, e o enlace é o que por fim a leva até Lagos — e uma vez longe de casa, a vida tornar-se-ia de uma dureza interminável. Se a aparência e o trabalho de Nnaife, seu novo marido, não lhe agradam de imediato, essas eventualmente se tornam questões secundárias, porque são muito pequenas em comparação à realidade que experienciam na cidade. Ao contrário dos povoados como o de seu pai, onde a influência colonizadora não era tão forte (mas é claro que ela estava presente, como a obra também vai explicitar), sua interferência é bastante concreta no litoral. Desde a imposição do catolicismo até a implementação de trabalhos ainda muito recentes em um país cuja mão-de-obra estava principalmente voltada à agropecuária, os colonizadores britânicos impunham seus costumes e domínio de maneira incisiva, minando a manutenção de uma cultura tão rica e as possibilidades de ascensão da população local. O próprio Nnaife possui diferentes empregos ao longo da narrativa (primeiro, como lavador de roupas de uma rica família britânica; mais tarde, como jardineiro na ferrovia e depois como soldado durante a Segunda Guerra Mundial), mas todos são provenientes dessa nova realidade que, aos olhos de Nnu Ego, parece tão diferente.

As-Alegrias-da-Maternidade-Buchi-Emecheta

A ausência de atração pelo marido, a insatisfação com o trabalho dele na casa de uma família branca e o estranhamento com a nova realidade são, no entanto, deixados de lado tão logo Nnu Ego engravida e dá à luz um menino; o que, aos olhos da sociedade, e também aos seus próprios, a torna uma mulher de verdade. Mesmo a fome, a miséria e a falta de recursos (problemas com as quais muitas famílias nigerianas precisavam lidar) não excluem o peso da maternidade como um agregador de valor à vida das mulheres, como também não tornam seus frutos menos desejáveis ou especiais.

“Aceitava Nnaife como pai de seu filho, e o fato da criança ser um menino lhe dava um sentido de realização pela primeira vez na vida. Agora estava segura, enquanto dava banho no menininho e preparava a refeição do marido, de que teria uma velhice feliz, de que quando morresse deixaria alguém atrás de si que se referiria a ela como ‘mãe’.”

Mas as alegrias da maternidade, como prova o título abertamente irônico da obra, durariam pouco na vida de Nnu Ego. Não muito tempo após ter o bebê, ela encontraria o filho morto, sem nenhuma explicação aparente, o que a leva a uma tentativa de suicídio. É exatamente nesse momento que Buchi Emecheta escolhe iniciar sua história, só depois apresentando outros fatos da vida da protagonista, aqueles que a levaram até Lagos em primeiro lugar, o que permite visualizar a maneira bastante particular com que a perda e a maternidade interferem em sua vida. Enquanto parece óbvio considerar a perda de um filho como o pior pesadelo de uma mãe, para a mulher nigeriana do início do século XX essa era também considerada uma falha sua. Assim, depois de um primeiro casamento fracassado, a morte do bebê Ngozi corroborava com a ideia de que havia algo de errado com ela, Nnu Ego, que, por sua vez, jamais seria uma mulher completa. Não é por acaso que, ao descobrirem o motivo de seu desespero, todos admitem que ela não era louca, afinal, mas uma mulher que perdera a única prova de que não era estéril, concordando em seguida que “(…) a mulher que não dá um filho ao marido é uma mulher fracassada”.

Leva algum tempo até que Nnu Ego, então com vinte e cinco anos, se recupere minimamente da perda e restabeleça uma nova rotina. Mas a narrativa encontra um novo ponto de ancoragem, dessa vez em uma nova — embora não exatamente inesperada — gravidez que, ao contrário da primeira, surge com muita tranquilidade na vida da protagonista. Oshia, o bebê, é recepcionado com alegria pelos pais e suas respectivas famílias, e também pelos amigos do casal, e mesmo a ausência de recursos para proporcionar-lhe as mesmas extravagâncias dispensadas ao irmão morto não os impedem de celebrar o seu nascimento. As previsões do curandeiro da família também indicam que Oshia será um grande homem, com um futuro promissor, o que muito alegra seus pais. Até chegar à vida adulta, no entanto, resta um considerável espaço de tempo no qual cabe à mãe velar pela saúde e bem-estar do menino, enquanto ao pai recai a responsabilidade de prover a subsistência da família, trabalhando para alimentá-los e manter um teto sobre suas cabeças — uma configuração, desnecessário dizer, em muito imposta pelos colonizadores.

Entretanto, a divisão moderna das tarefas, baseada em ideologias patriarcais de gênero, não levava em consideração as particularidades daquelas famílias, sendo apenas uma das muitas facetas articuladas pelas estruturas de poder colonizadoras, algo que Nnu Ego experiencia na prática. Diferente do lugar onde crescera, onde mulheres eram encorajadas a contribuir para além das tarefas domésticas, em Lagos elas eram privadas de quaisquer outras atividades que não o cuidado da família e do lar — uma tradição que seria mantida por muitos anos, tamanha a forma como arraigou-se naquela cultura. É verdade que a desigualdade de gênero sempre estivera presente na tradição nigeriana (as tarefas domésticas, por exemplo, jamais eram atribuídas aos homens, ao passo que a poligamia era uma opção apenas para o sexo masculino), fato este que não escapa ao olhar da autora. A própria Nnu Ego reproduz muitos discursos de cunho machista, como quando assume que a profissão de seu marido é humilhante porque lavar roupas não é uma tarefa masculina. Entretanto, mesmo nesse contexto, a possibilidade de exercer tarefas que saíssem do âmbito familiar proporcionava um senso de utilidade que, de outra maneira, deixaria de existir. Ao mesmo tempo, quando o trabalho feminino era necessário para o sustento familiar, é a culpa que recaía sobre a mulher: porque estaria deixando a casa sem cuidados; porque estaria deixando de passar tempo com os filhos; porque não estaria se dedicando ao marido.

“Pensara muito no velho ditado, segundo o qual dinheiro e crianças não combinam. Se você dedicasse todo o seu tempo a ganhar dinheiro e enriquecer, os deuses não lhe dariam filhos; se quisesse ter filhos, teria de esquecer o assunto dinheiro e se conformar com a pobreza. Nnu Ego não se lembrava de onde havia saído esse ditado, repetido por sua gente; talvez fosse porque em Ibuza a mãe que amamentava não podia passar muito tempo no mercado vendendo sem ter de correr para casa para dar o seio ao bebê. E, claro, bebês estavam sempre doentes, o que significava que a mãe perdia muitos dias de mercado. Nnu Ego se deu conta de que parte do orgulho da maternidade era ter um aspecto um pouco fora de moda e poder declarar alegremente: ‘Não posso comprar uma roupa nova porque estou amamentando meu filho, por isso, entendam, não posso ir a lugar nenhum vender coisa alguma’.”

Em sequência ao nascimento do segundo filho, Nnu Ego promete ser uma mãe diferente, o que significa seguir os costumes de uma cidade moderna e não os de sua terra, temendo que essa fosse precisamente a razão da morte de Ngozi. No entanto, pouco tempo depois, Nnaife é informado de que a família para a qual trabalha irá retornar para a Inglaterra, deixando-o apenas com uma carta de recomendação sem grande valor, o que obriga Nnu Ego a tomar providências, tornando-se a principal responsável pelo sustento da casa — uma mudança de papéis que interfere profundamente no relacionamento do casal. Enquanto Nnu Ego se sente culpada por não estar com o filho (e, eventualmente, filhos) e se ressente pelo marido não buscar um novo emprego, Nnaife perde o senso de utilidade (o mesmo, ironicamente, negado às mulheres) para a família, ressentindo-se por ficar em casa e depender financeiramente da esposa — e aí é interessante observar como ele parece genuinamente surpreso quando ela revela que a ajuda dele no trabalho doméstico era fundamental. A autora cria um cenário que evidencia, de diferentes formas, como as divisões tradicionais de gênero exercem influência na vida de homens e mulheres, em uma percepção que parte, e muito, de suas experiências pessoais. Casada aos dezesseis anos, após ter estado prometida desde os onze, Buchi Emecheta viu de perto os muitos problemas que cercavam os relacionamentos na Nigéria (ela própria vivera um casamento conturbado e violento) e suas vivências como mulher, mãe e esposa são minuciosamente entrelaçadas à sua obra. O olhar cínico que lança sobre a trajetória de suas personagens reflete a maneira ácida como ela própria enxergava a condição da mulher nigeriana, em uma crítica que, muitas vezes, também funciona como denúncia.

Para Nnu Ego, os anos seguintes são principalmente um período de desencantamento. A maternidade, que inicialmente é o seu maior sonho, não demora a se tornar um fardo. Não há dúvidas de que ela ame os filhos e o amor é o que a leva a enfrentar as mais diversas provações, quase sempre sozinha. Mas As Alegrias da Maternidade também reflete sobre a real necessidade de tantos sacrifícios. A noção de que a mãe deve abdicar de si mesma em função da prole, sobretudo dos filhos homens, está sempre em destaque, não apenas na vida da protagonista, mas de personagens secundárias que aparecem em diferentes momentos no decorrer da trama — como Adaku, cunhada de Nnaife que, em conformidade com a tradição nigeriana, se torna sua esposa após a morte do marido. Mãe apenas de meninas, Adaku é um contraponto à Nnu Ego que, em muitos momentos, se vê obrigada a priorizar a educação dos filhos homens em detrimento das meninas. Adaku, por sua vez, questiona-se abertamente sobre os motivos pelos quais a educação era considerada mais importante para os homens, porque as mulheres não tinham os mesmos direitos, porque elas não poderiam ter as mesmas oportunidades ao invés de serem utilizadas apenas como mercadoria de troca.

“‘Pode ser que você tenha razão de novo, esposa mais velha. Só que quanto mais eu penso no assunto, mais me dou conta de que nós, mulheres, fixamos modelos impossíveis para nós mesmas. Que tornamos a vida intolerável umas para as outras. Não consigo corresponder a nossos modelos, esposa mais velha. Por isso preciso criar os meus próprios.'”

Temas como o racismo, a guerra, a colonização e a influência do homem branco também estão presentes na obra, mas são inseridos de maneira complementar, como uma parcela do cotidiano daquelas pessoas. A maternidade é de fato o tema central e é ela que preenche a maior parte do romance. Mas é também a partir dela que essas e outras questões surgem e são brevemente destrinchadas — nada, afinal, passa despercebido ao olhar atento de Buchi Emecheta.

As Alegrias da Maternidade é um livro muito vívido, de linguagem limpa e honesta, e personagens sempre muito complexos, que jamais são limitados a ser uma coisa só. Perceber como eles se transformam ao longo dos anos e como a modernidade interferiu em suas vidas é, no mínimo, angustiante, mas é também o que torna a obra tão poderosa. Há finais felizes, é claro: Oshia realmente se torna um homem importante, enquanto seus irmãos, seja pela educação ou pela tradição, conseguem aquilo que desejam em alguma medida. Nnu Ego, no entanto, termina seus dias sozinha, na beira de uma estrada, sem nenhum dos filhos ao seu lado e também sem nenhum amigo, esses que jamais tivera tempo de conquistar enquanto acumulava o que, no livro, a autora chama de as “alegrias de ser mãe”. Ela nunca chega a ter a vida confortável que um dia lhe fora prometida; de fato, ela nunca chega a ter uma vida só sua. Para os vivos, contudo, a imagem que fica é a da figura santificada, da maternidade idealizada, a mãe dedicada que abdicou a si mesma pelos filhos, e a quem literalmente é erguido um altar. Não poderiam estar mais distantes da realidade.

As Alegrias da Maternidade

O exemplar foi cedido para resenha como cortesia pela Editora Dublinense.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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1 comentário

  1. Gostei muito da sua resenha/análise! Li o livro recentemente e Nnu Ego será uma presença em minha vida por um bom tempo ainda.
    Recomendei sua resenha na que eu fiz para o livro no meu blog.
    Parabéns!

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