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A Força do Querer: sonhos, ambições e as diferentes nuances da existência feminina

Há algum tempo, estávamos com saudades de reacender a editoria novela no site, mas foi só quando Glória Perez nos deu A Força do Querer que finalmente tivemos um motivo para fazê-lo. Com um rol de mulheres e tanto, a autora, que se tornou mais conhecida por suas histórias ambientadas em outros países, abordando culturas tão diferentes e distantes da nossa, decidiu mudar o foco dessa vez e nos presentear a cultura, costumes e personagens de Parazinho, pequena cidade do interior do Pará, local onde a trama da novela tem início, sendo, posteriormente, transferida para o Rio de Janeiro.

Diferente de outras produções que focam apenas em um único personagem, em A Força do Querer, Glória nos entrega não um, ou dois, mas nove protagonistas, cujas histórias se entrelaçam, revelando sonhos e ambições, sejam quais forem, de cada um deles. Como o próprio nome diz, a novela vai, então, mostrar a trajetória dessas pessoas tão diferentes, enfrentando um mundo onde devem lutar pelos seus desejos — uma luta que torna-se ainda mais particular quando falamos sobre as mulheres que protagonizam a trama. E quem são essas mulheres?

Ritinha (Isis Valverde)

Acredito que uma das protagonistas mais complexas com a qual nos deparamos em um folhetim, e isso é um presente. Ela não é uma mocinha amável e altruísta, que ama a todos e faz coisas boas o tempo inteiro. Tem gênio forte, não engole sapo, e apesar de sempre estar em algum envolvimento amoroso, deixa bem claro que gosta muito mais dela mesma do que de qualquer outro, que é dona do próprio nariz. Os dois homens que constituem seu triângulo amoroso são machistas e possessivos, mas Ritinha sempre consegue dar a volta em cada um deles. Não estamos acostumadas a encontrar nos produtos culturais mulheres cujas representações sejam tão complexas; essa é uma exclusividade dos homens, que, por isso, são exaltados. Já as mulheres que ousam sair da curva são rapidamente julgadas. É uma tarefa perceber como isso acontece, e fazer o possível para não julgar Ritinha, sua visão de mundo e suas atitudes é muito, muito importante.

Joyce (Maria Fernanda Cândido)

Uma mulher privilegiada, branca e rica, que constituiu uma família na qual busca toda a realização de sua vida. Por causa disso, Joyce acaba se frustrando constantemente e discutindo com todos, afinal as coisas quase nunca saem da forma como ela deseja. Se o controle é uma ilusão na maior parte do tempo, contudo, não dá para julgar Joyce sem pensar no estigma social que molda as mulheres que almejam um casamento e uma família, tornando-os suas maiores aspirações. Basta analisar a sociedade para entender por que muitas mulheres tomam para si o peso de tudo o que acontece fora do planejado, principalmente dentro do âmbito familiar, quase como se isso significasse que elas falharam, e somente elas, quando isso não faz o menor sentido, visto que uma família é formada por outras pessoas, que também possuem as próprias personalidades e desejos. Como muitas mulheres antes dela e muitas depois, Joyce é vítima de uma sociedade que a limita ao papel de mãe e esposa perfeitas — uma carga gigantesca que recai sobre muitas de nós.

Bibi (Juliana Paes)

Levemente baseada na história real de Bibi Perigosa, a personagem, na novela, retrata uma mulher que faz contraponto direto à Ritinha: é viciada em paixão, se entrega completamente aos seus relacionamentos e passa por cima dos próprios valores e vontades se isso significar estar ao lado de quem ama. Logo no início de A Força do Querer, Bibi termina seu noivado com Caio (Rodrigo Lombardi) porque não se sentia amada o suficiente, já que gostava de provas enormes de amor e grandes declarações. Logo em seguida, ela engata um relacionamento com Rubinho (Emilio Dantas), que parecia ser mais um homem bonzinho e íntegro no mundo, mas termina por se envolver em coisas escusas, se tornando traficante. Bibi, que era uma pessoa de bem e que abominava qualquer atitude ou atividade fora da lei, decide ficar com ele mesmo assim, se metendo ela mesma em muitas roubadas por causa disso. Longe de ser uma vida fácil, o amor em níveis patológicos de Bibi é o elo que une ficção e realidade: Fabiana Escobar, cuja história inspirou Glória Perez, tentou manter o casamento com dedicação mesmo após o marido ser preso, em 2008, e foi fiel a Saulo de Sá Silva mesmo quando sua vida e a dos filhos era ameaçada 24h por dia — tudo em nome do amor.

Aurora (Elizângela)

Mãe de Bibi, Aurora nunca confiou no genro quando seus podres vieram à tona e ficou claro que as atitudes e escolhas de Rubinho iam contra sua forma de viver. É Aurora quem tenta colocar algum juízo na cabeça da filha e está constantemente dizendo que Bibi precisa sair dessa, mas mesmo contrariada, continua a ser sua confidente e faz coisas com as quais não concorda para ajudar a filha. É uma relação interessante, sobretudo porque mostra que, mesmo não concordando com as ações de Bibi, Aurora jamais se volta contra ela. A questão de que filhos são seres humanos autônomos e podem seguir os próprios rumos, mesmo à revelia dos pais, paira sobre a trajetória das duas, que não coloca as escolhas errôneas de Bibi como justificativa para que ela se veja desamparada ou renegada pela mãe, no entanto. Estamos acostumadas a ver muitas relações turbulentas entre mães e filhas na televisão — sejam geradas por uma disputa, diferenças de valores, relacionamentos com terceiros, etc —, mas entre Aurora e Bibi o que prevalece é o respeito e o amor, tornando a jornada de ambas ainda mais preciosa.

Jeiza (Paolla Oliveira)

Major e campeã de MMA, Jeiza é tudo o que a sociedade não espera de uma mulher: dona de si, corajosa, enfrenta tudo o que vem pela frente, inclusive preconceitos em sua trajetória de trabalho — não uma ou duas vezes, Jeiza precisou demonstrar o dobro de atitude de qualquer homem para executar suas funções e mostrar sua capacidade, visto que muitos homens acreditam que vão conseguir dobrá-la facilmente ou duvidam de seu valor enquanto profissional, ao mesmo tempo que a assediam sistematicamente. A narrativa de Jeiza também reflete problemáticas voltadas para a questão das relações femininas, trazendo à tona a velha e eterna conversa de que mulheres sempre serão rivais. Além disso, a personagem vive às turras com o namorado machista, que tenta limitá-la de todas as formas possíveis sem, contudo, obter sucesso — Jeiza, afinal, dificilmente se dobra aos seus caprichos.

Irene (Débora Falabella)

Uma mulher totalmente sem escrúpulos, Irene entra na história com o intuito de roubar o marido de Joyce, Eugênio (Dan Stulbach), enquanto fingia uma relação de amizade com a primeira — um clichê tão velho quanto o mundo, bem pouco interessante e nada louvável. Contudo, logo fica claro que Irene não é movida por amor, mas sim por alguma obsessão escusa cuja natureza ainda não sabemos qual é. Com o desenrolar da trama, descobrimos que sua atitude tem algo a ver com a morte do ex-marido, e que a personagem mudou o próprio nome, antes Solange Lima, para não ser encontrada e acusada pelo crime que cometera. De lá pra cá, a trama de Irene tem se desenvolvido de modo a estabelecer a personagem como a grande vilã da história.

Ivana (Caroline Duarte)

Apesar do nome e da carinha, Ivana é um homem. Um homem tentando se descobrir, que sempre cresceu com muitas dúvidas e falta de compreensão sobre si próprio. Criada como uma boneca pela mãe, Joyce, Ivana foi, durante toda infância, a mini-me da socialite, que ela vestia e emperiquitava ao seu bel prazer, sem pensar levar em consideração a própria menina, se ela gostava daquilo ou não. A princípio, Ivan, como vem a ser conhecido mais tarde, acreditava que sua negação ao feminino era uma consequência de seu passado, só mais tarde descobrindo que a natureza de suas questões eram infinitamente mais profundas e complexas. Sua transição é um processo delicado, tanto para ele quanto para as pessoas ao seu redor, e assisti-lo em rede nacional, no horário nobre, é certamente um presente de representatividade que estávamos esperando (e precisando) há bastante tempo.

Nonato/Elis Miranda (Silvero Pereira)

A personagem vem para complementar a representatividade presente na trama de Ivana e explicar sobre o universo trans aos telespectadores. Nonato tem corpo de homem e não se incomoda com isso, e portanto se declara travesti, e não transexual. Diz sempre que a mulher está dentro dele, e que é vivida sem que ele sinta a necessidade de alterar seu corpo. Se acredita Elis Miranda e deixa claro que Nonato é sua verdadeira fantasia, e não o contrário, já que travestis são sistematicamente marginalizados em nossa sociedade, e é para essa sociedade que ele precisa assumir uma persona masculina. “De acordo com o que a sociedade pede”, Nonato diz, e é assim que pode ter um emprego e se sustentar. Sua construção é muito interessante, principalmente porque Glória Perez não tem receio de torná-lo bastante didático — sabemos que a família tradicional brasileira precisa disso há tempos — mas nem por isso é deixado de escanteio ou deixa de ser um personagem complexo, tridimensional, alguém que nos encanta constantemente com seu carinho e gentileza.

Dona Biga (Mariana Xavier)

A televisão aberta precisava há tempos de uma personagem gorda que não fosse complexada, muito menos alívio cômico. Abigail (ou Dona Biga) chegou para ser a Querida da ficção: não tem problema nenhum com o próprio corpo e choca a todos com sua autoestima elevadíssima e amor próprio, já que todos cismam em aparecer com dicas de dietas milagrosas, algo que não podia lhe interessar menos. Biga se acredita sexy, vive comprando lingeries e diz, o tempo todo que ser gorda não é problema, que a palavra não é um xingamento. Em uma sociedade que constantemente nos impõe modelos cada vez mais difíceis de serem alcançados — para não dizer totalmente impossíveis —, uma mulher que é dona de seu próprio corpo e plenamente satisfeita com ele, ainda que esteja fora dos padrões impostos, é revolucionário. As pessoas não se conformam com a atitude de Dona Biga, mas são elas que, diariamente, ainda seguem tendo de engoli-la — ainda bem.

Silvana (Lilia Cabral)

Talvez seja obrigatório dizer que o principal ponto da narrativa de Silvana é seu vício em jogos, que a faz se meter em muitas roubadas, mesmo acreditando piamente que não é viciada e só joga por diversão. Seu marido, Eurico (Humberto Martins), desde o início da relação, deixou claro que tinha horror a atividade, o que faz com que Silvana mantenha o jogo como um segredo. A relação de ambos se torna mais complicada porque Eurico possui ideais bastante conservadores e machistas, e está constantemente tentando controlar os passos de Silvana. As mentiras da personagem crescem na mesma medida que as tentativas de controle do marido, o que gera uma imensa bola de neve. Fora desse âmbito, no entanto, Silvana é uma pessoa muito boa, sempre preocupada com todos ao seu redor, e que tenta resolver os problemas dos outros; o vício, afinal, não a define.

Shirley (Michelle Martins)

No início da trama, Shirley era considerada só mais uma namorada novinha e aproveitadora de Dantas (Edson Celulari) um cinquentão rico e que, aparentemente, seguia esse padrão em seus relacionamentos. No entanto, a personagem logo se mostrou mais do que isso, tornando-se muito interessante, que conseguiu ganhar a amizade da filha do namorado, Cibele (Bruna Linzmeyer), e que se envolve em questões maiores ao longo da novela. É uma abordagem interessante, principalmente porque rompe com o estereótipo da namorada novinha e oca, que só ser o dinheiro do cara mais velho, o que Shirley já demonstrou não ser, nem de longe, do seu feitio.

Cibele (Bruna Linzmeyer)

Antagonista direta de Ritinha, Cibele era noiva de Ruy (Fiuk) quando ele se apaixonou pela protagonista e não teve culhão nenhum para agir da maneira correta. Ele começou a ficar com Ritinha, queria se livrar dela, depois percebeu que era dela que gostava e então deu uma banana para Cibele. Dessa vez temos a clássica representação da ex traída que não supera o acontecido: a traição aconteceu no início da novela e até hoje ela continua tendo como foco de sua vida dar um jeito de atrapalhar a relação dos dois.

Zu (Claudia Mello)

A empregada da casa de Joyce, segue bem o estilo “praticamente da família”. Está sempre à disposição para resolver todas as pendengas (inclusive emocionais) dos moradores da casa, dando pitacos sem medo de represália. Contudo, infelizmente, essa é só mais uma personagem retratada sem grande desenvolvimento, que não explora sua vida pessoal para além da função. Que saudade das empreguetes.

Dita (Karla Karenina)

Mais uma empregada sem desenvolvimento e sem vida pessoal, dessa vez a da família de Silvana e Eurico. Possui uma relação próxima com a patroa, porque está sempre acobertando suas jogatinas, e eventualmente ganhando um dinheiro a mais por isso, por debaixo dos panos. Mesmo acobertando, sempre tenta convencer Silvana de que isso não é legal e que ela deveria parar. Se preocupa muito com a patroa, e torce sempre para que tudo dê certo com ela.

Mere (Fafá de Belém)

Mãe de Zeca (Marco Pigossi), que até determinado momento acreditávamos estar morta, vive sob o estigma da mãe imperfeita, que abandonou o filho pequeno com o pai para ganhar a própria vida. Ao contrário da história contada por Abel (Tonico Pereira), Mere não havia abandonado o filho, mas viajado para fazer o teste de um filme e, ao retornar, não encontrara mais a própria família; Abel, afinal, havia mudado de cidade com o menino para que ela não os encontrasse mais. Assim, quando ele continua a bater na tecla de que ela havia abandonado a criança, Mere rebate, maravilhosamente, dizendo que não deixou o neném na porta de um estranho, mas deixou o filho no colo do próprio pai para fazer uma viagem — e deixar o filho com o próprio pai, ao contrário do que a sociedade nos faz acreditar, está muito longe de ser abandono.

Mira (Maria Clara Spinelli)

Mira, muito provavelmente, não estaria nessa lista, não fosse a representatividade interessante trazida pela escolha da atriz para interpretá-la: Maria Clara Spinelli é a primeira mulher trans a representar o papel de uma mulher cis não apenas em um folhetim, mas também em horário nobre. Mais um ponto para Glória e para a direção da novela: se por um lado, a história de uma personagem que se descobre transsexual é contada pela novela para propor debate e uma maior gama de representações, que a hipocrisia seja jogada de lado e atores trans façam parte do elenco, interpretando personagens que nada tem a ver com a temática comprovem que essa representatividade é, de fato, possível.

Sem cair em estereótipos, Glória Perez faz um trabalho de formiguinha e ganha muitos pontos ao mostrar mulheres que são fortes de diferentes formas, é verdade, mas antes de tudo humanas. Ao colocar tanta representatividade (e diversidade) feminina no horário nobre da televisão aberta brasileira, a autora transforma suas personagens em exemplos, fazendo com que a torcida, de agora em diante, seja para que outras produções reforcem as tantas possibilidades propostas pela autora do que é, afinal de contas, existir enquanto mulheres.

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